A Garota do rio Sado e de tanto mar

Foto: Fausto da Silva

Em Portugal existe um problema endémico há décadas que está longe de se ter dissolvido. Falo da estratificação conectada com as origens sociais de cada um. Deram-se avanços, mas essa lógica persiste, para lá do que estamos dispostos a admitir. Sente-se na cultura e nas artes, quanto mais noutras esferas, onde dinâmicas de poder são mais determinantes, como a política.

Não é uma questão de direita ou de esquerda. Seria interessante, por exemplo, aquilatar das origens sociais da larga maioria de políticos, comentaristas, mediadores e decisores do circuito político. Não é apenas uma questão de representatividade, no sentido mais instrumental, mas de imaginários. Vozes que consigam dialogar com o universo de outras vozes, diferentes daquelas com quem cresceram, a partir do seu enunciado particular. Por incrível que pareça, cinco décadas depois de Abril, o cenário é ainda circunscrito. Está muito melhor, mas ainda é muito das elites, embora a maior parte não se reconheça como tal, ou das elites e daqueles que as elites deixam pertencer ao seu círculo.

Pode parecer exagero. Talvez. Às vezes perguntam-me porque acabei a escrever tanto sobre música popular, tendo interesses tão diversos. Tem muito a ver com isso. Na música, apesar de tudo, encontrei liberdade, possibilidades de preencher vazios e transcender essas lógicas. Ainda assim, é relativo. Por isso o segundo álbum de Cátia Oliveira, ou seja A Garota Não, “2 de Abril”, me bateu tanto. Demorei até algum tempo a perceber isso. Musicalmente estava distante daquilo que tendencialmente me atrai: uma certa disrupção sonora, com traços de familiaridade, mas também de estranheza, algo que me transporte para fora de mim, e das minhas circunstâncias. O álbum de A Garota Não parecia-me, à primeira, algo clássico. Estava enganado. Acontece. O seu revolvimento respira de dentro, não se mostra a partir de fora.  

Recordo-me, puto, no Barreiro, final dos anos 80, a ouvir hip-hop pela primeira vez. Aquilo era diferente de tudo o que alguma vez ouvira. Fui perceber de onde aquilo vinha, quem eram aquelas pessoas, o que queriam dizer e porque me revia naquele som distante? Foi sempre assim. Ainda é. A curiosidade movida pelo querer perceber. Viajar através da música, exceder contextos, dialogar, criar ligações não entrevistas e, também, claro, perceber-me.

Ao longo dos anos fui gostando de muita música feita por estes lados, mas sentir que havia canções que falavam – não falando – da minha vida passada e presente, nem por isso. Exagero, sei. Há sempre muitas exceções para a regra que se afirma. Mas com as canções desse álbum isso aconteceu-me, e julgo que a muitos outros, de uma maneira muito óbvia. A Cátia falava de signos que reconhecia, de circunstâncias que vivenciara, ambientes que tacteara, sem um pingo de exibição, ou sentimentalismo fácil, como abunda por aí. Inteira. O bairro onde cresceu, a forma como, a partir de uma circunstância particular, nos situa no político e universal, tudo isso me fez sentido.

Depois, numa manhã de Verão, fui ao 2 de Abril, em Setúbal, ter com ela, e isso tornou-se ainda mais nítido. Falava da sua vida passada com lucidez, capaz de vislumbrar o sentido de comunidade, as relações de vizinhança, os afetos, e também as exclusões, violências e cicatrizes. Tempos depois, no espetáculo especial do CCB, comovi-me mesmo, pela maneira digna e vibrante, como conseguiu levar o seu bairro, e de tantos outros num processo de identificação contextual, para o palco.

A maior parte das vezes não me revejo em música genérica de intervenção. Aquele tipo de coisa onde se sente que alguém esteve a fazer canções “sobre” um tema: racismo, questões de género ou guerra, por exemplo. Isso abunda. Nada contra. Mas muitas vezes resulta apenas em algo genérico. Falta-lhe fibra, nervo, verdade. Aquilo que a Cátia faz é outra coisa. Parte de um contexto, acidente, situação, ou pequena história, para refletir sobre questões como a neoliberalização das nossas vidas, a privatização do que é bem comum, a violência doméstica, as touradas, o SNS. E isso faz toda a diferença.

Volta a ser assim no novo “Ferry Gold”. Aliás, formalmente, é semelhante. No anterior havia o ambiente do bairro. Agora existe os barcos, ou ferrys, para Tróia. Um microcosmos para pensar as transformações do seu mundo e do outro ao qual todos pertencemos. Famílias inteiras, populares, a caminho da praia, da Torralta, do fazer castelos na areia. Depois, aos poucos, umas vezes de forma velada, outras abrupta, vai-se expulsando essas pessoas. A forma como se faz é igual em todo o lado. São sujos, fazem barulho, não respeitam nada, diz-se. E o apartheid começa aí.

Um dia, os preços, e os estilos de vida associados a esses preços, tornam o território exclusivo. Está a acontecer de Setúbal à Galé, e em muitos outros pontos do país. O rio Sado, no caso, visto como separador de classes sociais, quando poderia ser uma via de coabitação. Não acontece o mesmo com o Tejo? Em vez de o olharmos como fator de ligação, continua a servir para separar. Mas o ferry apenas situa. É a forma de a Cátia dizer que não é Garota de Ipanema, mas do rio Sado, e daí parte para tantos outros mapas. Até ao “Alaska”, por exemplo, num dos atalhos mais bonitos de um álbum que se detém em muitas outras paragens, num diálogo criativo com outros personagens, lugares, ecos ou gravações de campo.

Tal como “2 de Abril”, este não é um álbum imediato. Nesta fase, criou-se a ideia que essa obra foi aclamada de imediato pela critica e publico. Não é verdade. O percurso de A Garota Não foi um processo. Levou tempo, foi maturado, diferente de racionalizado. O novo álbum, musicalmente, é até mais complexo, abstrato às vezes, etéreo, rendilhado, com muitas ramificações, mais do que os dois primeiros. Há melancolia, uma lucidez que fere, a procura sempre da justiça social, mas seria um erro ficar por aí. Ninguém é apenas uma coisa.

Não se é apenas luta coletiva, mesmo quando nasce a partir de dentro. Há também amor, desamor, amizade, sonhos, falhanços, oportunidades perdidas, a vida como ela é, a procura de tempo para que este tempo que andamos por aqui faça sentido. Essa forma desarmante de ser, como ela se assume, sem deixar de olhar à realidade à volta, é potente. Percebe-se que a coisa nem sempre lhe sai fácil. Há luta interna. Duvidas, expectativas, mas também cada vez mais confiança. Ainda bem que não desiste e se eleva. Que saiba comunicar tudo isso, tocando tantos, eis algo raro e inspirador.

 

*Escrevi este texto minutos depois de saber da morte de António Pires, jornalista, melómano de uma vasta cultural musical e chefe de redação do jornal Blitz durante 20 anos. Foi o meu primeiro editor. Era também oriundo da margem sul, do Barreiro. Não sei se gostava da música de A Garota Não. E no entanto, iria jurar que sim.

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