Desbocados, autoritários, cruéis, endinheirados: Os Brutalistas

As noções clássicas de neoliberalismo ou capitalismo já não nos situam. O mesmo se aplica aos conceitos tradicionais de fascismo. Há traços, fisionomias e características que se assemelham. Mas também deslocamentos, desvios, torções. Estamos noutra zona.

 

Ninguém sabe como lhe chamar. Há quem arrisque fascismo liberal. Outros, como Varoufakis, refletem que as novas formas de capital digital precisam da sua própria ideologia para se posicionarem distantes de qualquer tipo de coibição, estando nós a existir no tecno-feudalismo, regulados por tecno-lordes, sedentos de poder político.

 

Mas de todas essas noções que surgiram nos últimos anos, nenhuma parece mais ajustada do que o termo cunhado pelo pensador camaronês Achille Mbembe:  brutalismo. O termo provém do universo da arquitetura, identificando um estilo de construção massivo, denso, industrial e poluente, sendo empregue por Mbembe não simplesmente como diagnóstico político, económico ou cultural, mas algo mais da ordem existencial, designando a relação dominante dos seres humanos com o que existe, sejam outros seres humanos, o mercado ou o planeta terra. O seu desejo é insaciável.

 

Uma relação de força e exploração. Como se o planeta fosse inesgotável, sendo o papel dos poderes contemporâneos, segundo Mbembe, tornar a extração possível. E se um dia tudo se esgotar, para quem vive a nadar em dinheiro, existe sempre a hipótese de colonizar Marte, exporá Musk. Ou de encontrar uma forma de nos tornarmos imortais, dirá Jeff Bezos, que tem investido milhões em tecnologia para deter o envelhecimento.

 

Claro que Mbembe pensa a partir de um lugar específico: África. Mas daí é possível identificar dinâmicas globais que se foram intensificando na última década, e que o segundo mandato de Trump tem exposto. O filósofo livre, o espanhol Amador Fernández-Savater, que tem refletido muito sobre o assunto, olha para o brutalismo como a última fase do neoliberalismo. Antes existiam formalidades, mesmo que soubéssemos que a intenção final era o lucro. Agora temos a impiedade oligárquica a dirigir países como se fossem multinacionais.

 

Durante décadas acreditámos que quanto mais consolidada fosse a democracia, mais hipóteses de desenvolvimento económico sustentado haveria. Agora, ironicamente, apesar de Trump, Xi Jinping, Putin ou Milei provirem de campos ideológicos diversos, e no meio das suas singularidades, une-os o desprezo pelos mecanismos democráticos. O mesmo acontecendo com as oligarquias financeiras, sejam elas americana, russa ou europeias, nas tintas para políticas de redistribuição, apenas interessados na sua rede.

 

É isso que vemos emergir em todo o mundo hoje. Agora assume-se às claras que apenas o dinheiro interessa. Não há regras. Passa-se por cima do Estado. Desmembram-se países, territórios e populações, sem justificações ideológicas. E muito menos se necessita das classes médias do conhecimento que só criam entraves com princípios democráticos. Daí os ataques à academia, à ciência, à cultura. A época dos consensos, do diálogo e da consolidação democrática foram à vida. O que interessa é enfraquecer os serviços públicos, descartar os que resistem, ou os fragilizados que estão a mais.  

 

Quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, comunica com entusiasmo que chegou o momento da Europa se rearmar, para que os Estados possam contrair empréstimos sem limites para reabastecer os seus arsenais, é isso que está em jogo. No fim de contas, depois de todos os alarmes ambientais, para todos eles as bombas que protegem os seus muros são mais importantes que o aquecimento global. Nos últimos meses virou-se as costas ao ambientalismo. A aposta é o rearmamento.

 

As classes médias empobrecidas poderiam ser o toque a reunir, procurando alternativas, mas existe divisão, cinismo, medo ou impotência. Não é tanto que estejam a ser enganadas, mas estão enredadas nas teias do mercado e da tecnologia. A maioria opta por preservar o que tem, imaginando que não será afetada. Já os trabalhadores empobrecidos são levados a acreditar que a sua precariedade se deve aos imigrantes. Culpar os frágeis pelos atos da oligarquia é a forma eficaz de enganar as populações.

 

E é aqui que estamos. Portugal acerca-se da tendência. Existem traços de Trump ou de Milei nos discursos e práticas. O poder da brutalidade, do mais forte, do mais endinheirado, do mais desbocado, do mais cruel, como caracterizado por Fernández-Savater, está por aí. A paralisia que provocam leva-os a acreditar que inauguraram uma nova forma de governar baseada nos milhões, na digitalização, nos algoritmos, no domínio do quantitativo. É fácil ver no excessivo Musk um emblema disto. Mas existem muitos brutalistas, subtis, operando fora dos holofotes, quase invisíveis.

 

O mistério, as aspirações utópicas, as energias afetivas de que somos feitos dissolvem-se, emergindo os impulsos destrutivos, ou então um efeito de anestesia geral, para o qual também contribui uma comunicação social que se deixa enredar num ecossistema paralisante. Num dia vemos Gaza ser arrasada. No seguinte, uma outra circunstância ou guerra qualquer. Suspiramos, e nada fazemos, meio zombies, narcotizados.

 

Fica a indiferença. Quando não o prazer de ferir e ver outros sofrer. A crueldade predomina. Mbembe argumenta que a economia libidinal do brutalismo não envolve a renúncia, mas a ausência de limites. O mercado é a vida. Tudo se compra de forma acelerada, obscena, imediata. Colonizar significou sempre brutalizar. O colonialismo prefigurou o brutalismo, segundo ele. Sem restrições ou mediações, os mais robustos usufruem dos mais fracos como se fossem objetos descartáveis, ao mesmo tempo que, ao lado, nos comportamentos socioculturais, os estilhaços vão-se amontoando.

 

Jovens do sexo masculino sentem-se atemorizados diante do empoderamento feminino. A visibilidade das lutas anti-racismo cria um efeito reativo da parte daqueles que sentem os seus privilégios postos em causa. Gere-se o Outro, o que é diferente, de forma instrumental. Se tiver dinheiro para investir é aceite. Se for pobre é indesejado, isolado ou deportado. Torna-se supérfluo. Como já acontece também com muitos de nós. Não resistir a isto, não encontrar formas alternativas de estar no mundo, será o fim.

 

 

 

 

 

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