O direito ao litoral!
Foto: VB
O fenómeno não é novo. Chama-se privatização do país. Transforma-lo numa coutada exclusiva para alguns. Na ultima década e meia, em Portugal, depois de Lisboa e Porto, outros pontos do território, em meio urbano ou rural, vão sendo atingidos pelo mesmo vírus.
No caso, é todo o eixo Setúbal, Troia, Comporta, Melides e Galé, outrora toda uma vasta área de coabitação entre diferentes estilos de vida, classes sociais e disposições. Desde miúdo que frequento aquelas terras e areais e sempre ouvi dizer: “Isto dá para todos!” Cada vez mais se percebe que não é verdade. A história já foi contada muitas vezes noutros lados.
Existe um território apetecível. Vai havendo investimentos privados. Os empreendimentos propagam-se. O turismo (de luxo, no caso) expande-se. A teia entre políticos, investidores e redes de interesses intensifica-se. Os planos e leis que outrora zelavam pelo bem comum, vão sendo abolidas e as delimitações entre o que é público e privado vão-se dissipando.
A segregação faz-se de muitas maneiras. Existe a pornográfica, através do dinheiro. Aumenta-se exponencialmente os preços. Dos Ferry Boats. Dos restaurantes. Do imobiliário. Do turismo. Outras vezes a coisa é mais subtil, através da imposição de um certo estilo de vida entre semelhantes, de tal forma que os restantes acabarão por sentir-se excluídos.
A população, residente, ou flutuante, assiste a tudo, numa primeira fase, com regozijo, com alguns a amealharem alguns cobres, e numa segunda fase com apreensão, porque vão percebendo que também são excluídos, ao mesmo tempo que os equilíbrios (ambientais ou socioculturais) vão sendo postos em causa. Um pequeno exemplo.
A construção de um dos vários empreendimentos de larga escala (construção de 292 residências de luxo e mais um campo de golfe) implicou o cancelamento – por enquanto, parcial, porque ainda existe – do Parque de Campismo da Galé. Mas como a população que ali afluía dinamizava a economia local – ao contrário do turismo de luxo – todo o ecossistema económico se ressentiu.
É aí que estamos. Os investimentos continuam. Os atentados ambientais também. O frenesim de construção não abranda. Há zonas onde só se avistam retroescavadoras e guindastes. A presença de seguranças é uma constante. Os acessos às praias, para quem vem de fora, vão sendo muito habilmente dificultados, quando não mesmo bloqueados.
O direito ao litoral está posto em causa. Depois, existe quem reaja e resista. Associações, plataformas, grupos de cidadãos. Não existe ilusões. Os cidadãos estão atomizados, fragmentados, isolados. É David contra Golias, mas se nada for feito, então, é que será mesmo o fim. Ninguém tem nada contra o investimento privado ou a dinamização territorial, mas sim contra o facto de os desequilíbrios não serem acautelados, as intervenções em vez de serem feitas com pinças, serem realizadas com buldózeres, apenas atendendo ao lucro, sem respeito pelo ambiente, e pela diversidade socioeconómica e cultural.
Nos últimos três dias o movimento Reabrir a Galé gritou, em diversas iniciativas, entre manifestações nos Ferry Boats, conversas públicas e caminhadas, pelo Direito ao Litoral. Ontem ao caminhar pelo areal a perder de vista pensava num comentário da minha amiga Carla Baptista. “Quem diria que em 2025 tínhamos de estar a lutar pelo direito de ir à praia?”, escrevia ela. “Não há nada mais ilustrativo do estado do mundo.” É mesmo isso.
E o pior é pensar que, daqui a uns anos, se nada for feito, quem agora aqui investe milhões, irá para qualquer outro lugar, porque o que seduzia no início estará esgotado ou totalmente destruído. E o capital irá colonizar outro território qualquer virgem. Marte, talvez.