Buraka Som Sistema: “Isto é Kuduro! Música com Futuro!”

Kalaf, Branko, Conductor, Petty e Riot: Os Buraka em 2006

Estamos a meio de Maio e cá fora está uma noite amena. Lá dentro o sistema de ar condicionado não parece avariado. Mas a temperatura no Clube Mercado, em Lisboa, está elevadíssima. Há casacos à cintura, t-shirts que se despem e sapatos de salto alto na mão. Toda a gente quer dançar. Toda a gente está a dançar.

“Nãaao vacilaaa!” grita-se do palanque, onde se distinguem cinco vultos, enquanto um ritmo sintético desvairado zurze nas paredes, volteia-se e aloja-se no corpo, que parece dançar sozinho. A potência e a nitidez do som nem sequer são as melhores, mas a folia está instalada. Alguém ao nosso lado profere a frase certeira da noite: “kuduro é futuro!!!”. Todos reagem aos movimentos de voz e de anca de Petty, aos incitamentos de Kalaf e de Conductor e aos impulsos rítmicos lançados por Lil’ John e Riot, através de computadores portáteis, sintetizadores, mesa de mistura, vocoder e dois leitores de CD. Em acção estão os Buraka Som Sistema.

Na plateia há quem esteja a tomar contacto pela primeira vez com aquela música. O ritmo é sincopado e repetitivo, contendo semelhanças com expressões musicais como o tecno e house, mas depois à elementos quebrados, linhas de baixo arredondadas e elementos sintéticos que associamos a músicas africanas. As palavras são pura performance e os traços de sintaxe são excluídos. As palavras funcionam quase como eco do ritmo, criando um novo léxico e outros significados, numa mistura de calão de rua, português oficial, crioulo, luandês ou inglês. 

Há quem pergunte que música é esta? Há quem responda: kuduro. Não será propriamente kuduro clássico, mas o germe é esse. O género anda por aí há anos, mas confinado às discotecas de música africana, vivendo imerso em muitas contradições. É uma das músicas de dança mais ouvidas de Lisboa, mas é desvalorizada por muitos emigrantes africanos de primeira geração (que a acham demasiado “ocidentalizada” em comparação com mornas, funáná ou coladeras) e proscrita pelos filhos que cresceram com músicas urbanas globais (que a acham muito “africana” em analogia com o hip-hop ou drum & bass). 

Não faz também parte do leque de géneros de música popular visivelmente consumidos na sociedade portuguesa. O conjunto da sociedade olha-a com indiferença ou preconceito. As elites, como em relação ao conjunto das músicas africanas ou como em relação ao hip-hop, trata-a com paternalismo. De tanto querer legitimar a presença da diferença – com discursos sobre “etnicidade”, “lusofonia”, “segunda geração de emigrantes”, “jovens luso-africanos” – mais não faz do que reforçar essa mesma diferença, reflectindo afinal a dificuldade em aceitar que há portugueses com as mais diversas origens, cores, fantasias e experiências.

Mas esquecidos os estigmas, todos dançam, diz-nos Conductor. “Fascina-me aquele ‘people’ que nunca gostou de kuduro e fica ali a bailar que nem um louco”, explica com evidente deleite. “’Eu não sou angolano, não oiço esses ‘mambos’, dizem eles, mas depois é vê-los a pular. Há muita gente com preconceito que diz que o kuduro é música dos pobres, não apropriada, mas quando o som está a bater esquecem tudo. Abandonam-se tabus e o pudor.”

Estamos em Campo de Ourique, Lisboa, na Enchufada, nome de estúdio e de editora, base de operações de projectos como os 1-Uik Project, CoolTrain Crew ou Fusionlab. É também um espaço de cumplicidades. É por isso que por lá vemos, nessa tarde, Sam The Kid, a ultimar o novo álbum. É também por isso que sendo os Buraka Som Sistema uma ideia desenvolvida na Enchufada de Lil’ John, Kalaf e Riot, também por lá andam Conductor dos Conjunto Ngonguenha e Petty. E outros poderão juntar-se.

“Sempre foi nossa política haver várias pessoas a colaborar e a trocar ideias”, explica Kalaf. “É óbvio que a Buraka tem um trio de produtores – o Lil’ John, o Conductor e o Riot – e, depois, à volta desse núcleo, gravitam várias pessoas, como eu, a Petty e quem mais acharmos que faz sentido. Estamos abertos à surpresa. Este é um projecto em construção que tem vindo a crescer.” O nome, esse, brotou numa noite de festa na Casa da Música no Porto, recorda Lil’ John: “às tantas começamos a dizer disparates ao microfone, como os kuduristas e, na brincadeira, alguém disse que estávamos a trazer o som da Buraca para a Casa da Música.”

Não é apenas a formação que está em aberto. É também a música. Esta semana vai ser lançado um single em vinil – resultado da cooperação com a plataforma de cultura urbana Red Bull Home Groove – contendo os temas “Yah! Feat. Petty“ e  “Sem makas“ e para Julho está previsto o lançamento de um EP de oito temas.

Mas não tem sido a ausência de edições que tem impedido a propagação da informação de que algo de importante está a acontecer. O boca-a-boca via internet tem funcionado e a concretização de sessões ao vivo também tem contribuído para o disseminar da comunicação. Já realizaram três sessões e mais algumas estão marcadas – hoje regressam ao Mercado, em Lisboa; a 8 de Julho estarão no evento Hype@Tejo em Lisboa e a 21 de Julho prestarão provas no Músicas do Mundo, em Sines.

Numa das noites mais concorridas do ano em Lisboa, a de Santo António, actuaram no evento Popular Soundclash e, mais uma vez, apesar do som não ser famoso, agarraram os milhares de presentes. Dessa vez houve até cinco bailarinas em palco, propiciando um ambiente ainda mais libidinoso e intratável. Kalaf repetiu diversas vezes “de Lisboa para o mundo, do mundo para Lisboa”, enquanto o som elementar e hedonista se fazia ouvir. Os curiosos abanaram-se, apanhados de surpresa. Os convertidos deixaram-se ir. O verbo soltou-se desenfreadamente, como se os declamadores se confrontassem entre si: “caralho! Endireita esses colhões”, disse um. “Vai lavar a loiça”, atirou outro.

“Isso é o kuduro – liberdade total de expressão”, justifica Conductor. “É normal aparecer pelo meio uns ‘porra’ ou umas ‘caralhadas’. São sons. São sons normais.” Lil’ John reforça: “são gritos, refrões, exclamações que fazem sentido naquele contexto.” Kalaf completa: “são ‘dicas’, palavras de ordem lançadas para incendiar a pista de dança. No Soundclash estavam muitas pessoas conhecedoras de kuduro e era engraçado vê-las a cantar essas ‘dicas’, entendendo-as, enquadrando-as, percebendo qual a função delas ali. Quando se compreende o contexto é perfeito.”

Através da audição da sua música já tinham obtido reacções encorajadoras, mas o confronto com o público foi surpreendente. “Ninguém estava à espera que as pessoas vibrassem tanto”, confessa Lil’ John. “Nunca tinha visto nada assim. Há uma transcendência grande. As pessoas libertam-se. Nas duas vezes que actuámos no Mercado percebemos que há um núcleo de pessoas informadas, que vai ali pela música e pela dança, e todas são unânimes em dizer que aquilo tem algo de fresco e redentor.”

E no entanto, o que está a acontecer não constitui surpresa. Há quatro anos, nestas páginas, interrogávamo-nos porque é que ninguém ainda havia analisado as potencialidades do kuduro. No passando recente houve experiências esporádicas de rescrita do género, através de temas avulso dos Spaceboys, Boss AC ou 1-Uik Project, mas nada de muito assumido. A explicação talvez seja aquela que o brasileiro DJ Dolores, fã de kuduro, partilhou com o Y em Março de 2005: “às vezes é difícil ter uma atitude positiva com essas músicas, quando se está muito próximo delas. Existem barreiras que é necessário derrubar. A mais difícil de ultrapassar é a social, mas há também a barreira racial.”

Há dois anos, a propósito de um grupo de músicos que partilhava a mesma sensibilidade e se cruzava na cidade de Lisboa, João Gomes dos Cool Hipnoise e Spaceboys, dizia-nos: “temos consciência do local onde vivemos. Temos uma vibração única em Lisboa e estamos numa posição geográfica privilegiada. Não existe nenhuma grande cidade do Sul da Europa com o Atlântico à porta, com as ligações ao Brasil e África que nós temos. Podemos receber e filtrar todas essas músicas de forma única, procurando uma linguagem nossa”. Há um ano, no Festival Sónar de Barcelona, Lil’ John e Kalaf surpreendiam os presentes, colocando a tocar “Yah!”, tema de minimalismo rítmico inspirado no kuduro. Declamando para uma plateia de estrangeiros, Kalaf gritava: “this is Lisbon sound!”. Os dados estavam lançados.

“Agora as pessoas já começam a perceber que é possível encarar o kuduro como um género válido dentro desse grande universo que é a música de dança, mas quando começamos sentimos que existia a atitude de afirmar que o kuduro era bom para discotecas africanas e não mais do que isso, mas quando começamos a pegar nele e a transformá-lo, de repente começaram a surgir comparações com grime ou broken’ beat muito mais concretas.”

Ou seja, o surgimento dos Buraka Som Sistema não pode ser dissociado de um contexto mais global de validação de linguagens urbanas até há pouco desacreditadas e destituídas de veleidades artísticas, criadas a partir de tecnologia rudimentar, como o baile funk do Rio de Janeiro, o reggaeton de Porto Rico, o crunk da Califórnia, o hyphy de São Francisco, a Baltimore club music, o dancehall da Jamaica ou o grime londrino. E não é por acaso que alguns dos principais responsáveis pela requalificação destas linguagens já entraram em contacto com os Buraka. É esse o caso de Diplo, que também vai estar no Festival Hype@Tejo, do brasileiro Cassiano ligado ao baile funk carioca, do americano DJ/Rupture ou do inglês Sinden, parceiro dos Basement Jaxx, que remisturou um dos temas da revelação Lady Sovereign.

“Temos tido reacções estupendas através do MySpace. O Sinden manda-me um e-mail sempre que passa temas nossos, contando que as pessoas reagem de forma eufórica” conta Lil’ John e Kalaf acrescenta: “o MySpace é o sítio ideal para promover este tipo de projecto. Consegues estar em contacto direto com as pessoas que te interessam. Tens ali música para ser ouvida. É como abrires a janela da tua casa. É uma forma democrática de expor a música. Temos consciência que esta música é passível de ser exportada. De momento a nossa prioridade é fazer um disco e depois provavelmente vamos preocupar-nos em marcar o nosso posicionamento na cena global de música de dança. Estamos em contacto com pessoas, como o Diplo, que se interessam por música de periferia, música ‘brega’. Vamos ver o que vai dar.”

Os Buraka Som Sistema começaram de forma instintiva. Falando-se com eles, percebe-se que ainda não entendem muito bem o que está a acontecer, mas há luzes: “Todos temos outros projectos e nunca sentimos um feedback tão imediato. É o que precisávamos para saber se estávamos no caminho certo.” O filão está aí.

Num país onde a espontaneidade das ideias é quase sempre substituída pelo calculismo, seria pena que não se percebesse o que está em jogo. E o que está em jogo resume-se a isto: não existe em mais nenhum lugar do mundo uma música assim. A ser percebida da mesma maneira, aqui. Esta é música para ser vivida agora, sem preconceitos. “À uma entrega à dança como nunca tinha visto”, explica Kalaf. “Olhamos para os rostos, para os sorrisos e para a forma como as pessoas se libertam e perguntamo-nos: o que é isto?” Isto é uma nova energia que anda no ar. Apanhem-na.

*Texto originalmente publicado no Público (Ípsilon) em Maio de 2006 

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