David Sylvian: “Com os Nine Horses Sinto-me Livre”
Em 2005, há 20 anos portanto, David Sylvian, o irmão Steve Jansen e o alemão Burn Friedman criaram o álbum “Snow Borne Sorrow”, que foi agora reeditado em formato fisíco, em vinil, algo que nunca tinha acontecido. Motivo para recuperar uma entrevista que fiz a David Sylvian na altura do lançamento desse mesmo disco.
“Chamam-se Nine Horses, são David Sylvian, o irmão Steve Jansen e o alemão Burnt Friedman, o mesmo de projectos como Flanger, Nonplace Urban Field ou Drome. Pelo meio surgem convidados como a cantora Stina Nordenstam ou o trompetista norueguês Arve Henriksen dos Supersilent. Pode muito bem acontecer que nunca mais gravem juntos, mas por agora há para ouvir “Snow Borne Sorrow”, álbum de canções de sensibilidade pop, atmosferas tranquilas, molduras digitais e dinâmicas jazzisticas, a meio caminho entre aquilo que Sylvian fez nos anos 80 e o que concretizou há dois anos no álbum “Blemish”.
Depois dos Japan, das inúmeras colaborações e dos álbuns a solo, o músico inglês a residir nos EUA passa por uma período de grande fulgor criativo, a que não é alheio o facto de ter terminado a relação de 20 anos com a multinacional Virgin e ter formado a sua pequena estrutura editorial, a Samadhisound. Agora surge acompanhado por Friedman e Jansen, e os três encenam, com elegância e calculado sentido de risco, canções de recorte clássico. Sylvian diz que tudo começou em 2002.
Friedman, Jansen e Sylvian, os Nine Horses
Nine Horses é outra identidade para David Sylvian, um projecto de três músicos ou uma verdadeira banda?
É um projecto de colaboração entre três músicos. A razão porque é colaborativo prende-se com o facto de ter resultado, realmente, duma cooperação entre mim, [Steve] Jansen e [Burnt] Friedman. Nine Horses é como uma banda sem centro. Não é um grupo de músicos que se juntam em estúdio para gravar um disco. Isso nunca aconteceu. Trocámos ficheiros através da Net e trabalhámos de forma independente. Eu e Steve fizemos algumas coisas juntos em estúdio, mas Burnt e eu trabalhámos à distância. Pensando bem, não sei muito bem o que somos, porque, hoje em dia, essa noção do que é fazer parte de uma banda está tão diluída – existem tantas opções em aberto. Somos uma banda, de alguma forma, mas acima de tudo Nine Horses resulta da colaboração entre três músicos. É isso.
O que é que os motivou e que propósitos existiam no início quando encetaram este projecto de colaboração?
Tudo começou de forma vaga. Comecei a compor com o meu irmão em 2002 de forma descontraída – tinha um estúdio novo e limitávamo-nos a explorar algumas novas tecnologias, com a ideia de formar uma banda da qual seríamos o núcleo. O facto de explorarmos novas tecnologias tornou todo o processo lento e laboratorial e, pelo caminho, acabei por ter algumas das ideias que conduziram à feitura de “Blemish”. Tinha urgência em acabar esse disco e Nine Horses foi ficando na gaveta.
Depois de ter finalizado “Blemish” foi-me difícil regressar ao trabalho com Steve, por questões de tempo e porque senti com esse álbum que havia chegado a um novo patamar criativo. Mais tarde, acabei por conhecer Friedman – foi ver um concerto meu em Colónia – e propus-lhe trabalharmos em conjunto. Enviou-me material, trabalhei nele e ele completou-o no contexto de um álbum que estava a ultimar com Jaki Leibezeit. No final, fiquei algo desiludido com os resultados e perguntei-lhe se podia recriar aquele material. Ele autorizou-me e dei por mim a pensar que se juntasse aquele material ao que já havia criado com Jensen teríamos um óptimo álbum. E foi o que aconteceu.
Pelo que diz e também pelo que está patente no álbum, Nine Horses é um projecto que remete para o seu passado, como a aposta na estrutura clássica da canção, mas também contem elementos que o aproximam de “Blemish”.
É um álbum feito antes e depois de “Blemish” e isso sente-se. Foi por isso que, inicialmente, tive alguma dificuldade em regressar ao material que havia gravado antes de criar esse álbum. Sentia que as formas me eram completamente familiares e, nesse sentido, não constituíam um verdadeiro desafio. Mas, no final, olhando para todo o processo, é um álbum no qual me revejo, porque expõe suficientes coisas que me estimularam e que me permitiram continuar. Mas é verdade que, formalmente, é um álbum que faz eco de coisas que já fiz no passado.
Nos últimos anos criou um álbum muito diferente dos anteriores, “Blemish”, terminou uma relação de 20 anos com a multinacional Virgin e formou a sua pequena editora. Pelo caminho deve ter perdido fãs, mas parece ter renascido.
Sinto-me livre. Sinto-me livre, a sós, e com os Nine Horses. Libertei-me. Quando se assina com uma grande editora por um período de 20 anos, sabemos que vamos retirar desse acontecimento coisas boas, mas também algumas negativas. Sentimo-nos protegidos, mas também perdemos liberdade. Apenas percebi o quão revitalizante foi depois de ter terminado “Blemish”. Nessa altura entendi que não valia a pena andar a bater à porta de grandes editoras e resolvi formar a minha pequena estrutura e até agora não estou nada arrependido.
Nas suas letras existe um teor subjectivo – podem ser sobre si, mas também sobre factos universais. Diz que este álbum é marcado pelo 11 de Setembro, mas isso nem sempre é perceptível. Nunca teve a tentação de criar letras mais concretas ou mesmo canções empenhadas politicamente?
Tenho a toda a hora... [risos]. E já o fiz. “World citizen”, que fiz em conjunto com Ryuichi Sakamoto, é-o, mas é verdade que a minha inclinação não vai nesse sentido. Nesse caso, inicialmente, recusei. Não me parecia ser a pessoa certa para o fazer, mas depois de alguns meses fi-lo. É uma canção política, mas envolta por poesia. Havia poucas vozes decentes a falar do que estava a acontecer na América – e que continua a acontecer – e fi-lo. Mas não é algo que me veja a fazer mais vezes.
As suas canções são quase sempre contidas. Raramente sentimentos como raiva ou fúria são percebíveis. Sente-me mais confortável a expressar outro tipo de emoções?
Essas emoções estão lá, mas nem sempre são expressas da maneira que se espera. Nem eu sei, às vezes, a fúria que contêm...[risos]. Existe fúria, mas exposta de forma relaxada. Gosto dessa contenção – provocar, mas de maneira sedutora.
Afirma regularmente que as suas experiências de vida não estão dissociadas da música. O músico confunde-se com o pai que leva o filho à escola. Iggy Pop, por exemplo, em palco veste a pele de um personagem. E no seu caso?
A música está integrada na minha vida. A música faz parte dela; a minha vida é em grande parte a música. Fazem eco. São inseparáveis. Reflectem-se mutuamente. Quando a pessoa se transforma, a música transforma-se também. Mas isso não quer dizer que quando subo ao palco não vista uma outra pele, como Iggy Pop, embora não pense muito nisso. Acontece, apenas.
Numa das últimas digressões que encetou, falou na hipótese de nunca mais voltar a fazê-lo, dizendo que era muito cansativo. Continua a pensar da mesma forma?
Sim, mas não é um assunto sobre o qual tenha certezas. É claro que continuo a gostar de dar concertos, mas o dia a dia de uma digressão pode ser uma coisa realmente dura e não tenho a certeza se vale a pena. Não estou reformado, mas em suspenso.
Ao longo dos anos tem colaborado com imensos músicos. É uma forma de conseguir a necessária confiança que lhe permite arriscar e desafiar-se enquanto compositor?
É uma das razões, mas não a principal. Um dos benefícios de encetar colaborações com pessoas como, por exemplo, Derek Bailey, é que ele é capaz de me dar qualquer coisa que eu não consigo produzir. “Blemish” é um bom exemplo de um disco feito, predominantemente, por mim, sozinho. Mas trabalhar com outros músicos como Fennesz, Bailey ou Friedman leva-me para zonas que eu não imaginava poder percorrer sozinho. Há muitos benefícios no processo de colaboração. É dar e receber. É tentar uma espécie de química. Quando o trabalho de um músico me inspira – como aconteceu com Friedman – tenho tendência para imaginar o que aconteceria se lhe introduzisse qualquer coisa de meu. Sucede a um nível inconsciente, mas acontece-me.
No caso específico de Burnt Friedman o que o atraiu?
Os elementos rítmicos do seu trabalho. Adoro o que ele faz a solo ou nos Flanger. Mesmo já não tocando, tem formação como baterista, e isso está presente na sua música. É também um fantástico programador e aquilo que faz com o ritmo é muito bonito. Não é enérgico ou vibrante, como temos tendência a pensar o ritmo. É belo. Recordo-me da primeira vez que ouvi a sua música e de não perceber se estava a ouvir um verdadeiro baterista ou se eram programações. Fiquei muito intrigado.
Vive nos Estados Unidos, mas a sua primeira paixão foi o Japão e a maior parte dos seus admiradores são europeus. Sente-se melhor a viver num país onde é pouco conhecido?
Nem mais. É muito mais confortável viver num local onde quase ninguém nos conhece. Não tenho nenhum problema em viver nos Estados Unidos por esse facto – embora tenha outros problemas com os Estados Unidos, nomeadamente com aquilo que a Administração Bush tem feito nos últimos anos.
Ponderou a hipótese de voltar à Europa por esse motivo?
Sim, mas os meus filhos nasceram aqui, e tenho alguma relutância em fazê-lo. Estamos longe da cidade, vivemos numa zona rural e eles, enquanto crianças, têm uma boa vida. Mas é claro que, por vezes, sinto falta da Europa e tenho a intenção de passar, no futuro, metade do tempo aqui e a outra metade aí.
A indústria da música mudou nos últimos anos. Numa fase inicial, “Blemish”, podia ser adquirido apenas através do seu sítio oficial na internet. Qual foi a resposta do público?
Surpreendente. Vendemos mais discos a partir da distribuição directa a partir da Net, mas parece-me que a indústria tradicional ainda faz sentido. Estamos a meio caminho de algo que ainda ninguém sabe muito bem o que é. Através da Net conseguimos comunicar directamente com as pessoas e isso é fantástico, mas ainda existem ainda muitas outras que preferem deslocar-se a uma loja, o que é compreensível.
Já sabe se o seu próximo álbum vai estar mais próximo do conceito de “Blemish” ou de “Snow Borne Sorrow”?
É difícil imaginar o que vem a seguir, porque as intenções iniciais podem acabar por resultar em algo completamente diferente. Mas o meu desejo é continuar a explorar os caminhos desenvolvidos em “Blemish”. Não vou focar-me nos mesmos temas, mas em termos de aproximação é por aí que vou.