A GAROTA NÃO: “Neste bairro vivi tantas coisas. De um trapo inventávamos o mundo. Isso continua a guiar-me.”
Foto: Nuno Ferreira Santos
Cátia Oliveira, mais conhecida como A Garota Não, lançou um álbum que é uma revisitação sentida ao bairro de Setúbal onde cresceu para a vida, a humanidade, a música e uma certa poesia. “Uma poesia de sobreviventes, de quem passa muito, mas mantém-se inteiro e digno”, diz-nos ela, no bairro 2 de Abril, onde a fomos encontrar.
Não é desconhecida. Lançou dois álbuns. Passa em algumas rádios. Dá concertos. Ela própria diz que está a fazer o seu percurso sem pressas. Mas a música de Cátia Oliveira, mais conhecida como A Garota Não, merecia mais nesta altura. O seu último álbum, “2 de Abril”, é das coisas mais conseguidas e inteiras do ano, expondo uma voz expressiva, um manejo das palavras pertinente como é raro ouvir-se, e uma música que, sem perder clareza, faz circular à sua volta inúmeros impulsos (folk, música portuguesa, brasileira, angolana, fraseados de hip-hop, motivos electrónicos), tudo disposto com engenho e de maneira consistente.
E depois existe 2 de Abril. Nome do bairro de Setúbal onde nasceu em 1983 para a humanidade, a poesia e a música. Título do álbum lançado nesse mesmo dia deste ano, e também data, em 1976, em que a Constituição da República Portuguesa foi aprovada em plenário da Assembleia da República. Um marco da democracia. Como escrevia Nuno Pacheco nestas páginas, em Abril, trata-se de uma obra que tem tanto de autobiografia como de memória de um tempo de crescimento. É um magnífico trabalho conceitual, com vinte canções que respiram em conjunto, e que tanto podem ser ouvidas em qualquer plataforma digital, como num CD artesanal, objecto singular feito à mão, evocando – quem sabe? – a mãe, já falecida, conhecida pelas costuras e artes manuais.
Anda-se com Cátia pelas ruas do bairro 2 de Abril e quase ninguém a conhece pelo nome próprio, ou pela designação artística que adoptou depois de um episódio com a canção Garota de Ipanema de Tom Jobim, dos tempos em que cantava música brasileira em bares. “Insistiam para eu a cantar e eu dizia que não tinha nada a acrescentar a essa canção e, invariavelmente, respondia: a garota não.” Para a maior parte, ela é “a filha da Fernanda”, nome da mãe. Quando encontramos a “vizinha Agostinha”, que cuida de uma pequena horta, disposta entre os prédios, é assim que ela é de imediato reconhecida. “Sempre foi assim, muito meiguinha e uma menina linda”, diz-nos Agostinha, enquanto ambas põem a conversa em dia, resumindo em minutos os anos que passaram.
“Eu era terna, de dar abraços, mas também muito reguila”, diz-nos por sua vez Cátia. “A minha mãe fazia trabalhos de costura em casa e eu passava o dia com ela. Ela era muito afectuosa e transferia isso para os cuidados para que tinha comigo, os meus dois irmãos mais velhos, e para as pessoas do bairro. Era dada às pessoas, ajudava-as, envolvia-se. Daí que eu seja ‘a filha da Fernanda’. O meu pai é mais reservado. Eu era meiga, mas tanto era capaz de um abraço afectuoso, como em ocasiões de conflito participar em brigas com pedradas. Nunca andei na pré-primária – só fui para a escola aos 7 anos – e era meio bicho-do-mato.”
O 2 de Abril fica no meio de outros bairros sociais, como o da Bela Vista, que olhos menos experimentados custam em divisar as fronteiras. Mas ela sabe bem quais os limites de cada um. Cresceu ali, por entre rivalidades territoriais juvenis. Na manhã em que visitamos o lugar reina a tranquilidade. Sempre que alguém passa por nós há um “bom dia” para partilhar. Um grupo de etnia cigana galhofa entre si num largo. Crianças, negras e brancas, jogam à bola. Pessoas mais velhas assomam às janelas, curiosas pelo facto de verem alguém ser fotografada. À porta das associações desportivas os homens comentam os resultados do futebol da véspera. E ouve-se o som da kizomba a brotar de uma das varandas.
Uma manhã igual a muitas outras. “A diversidade, o facto de sempre ter havido aqui timorenses, angolanos, cabo-verdianos ou muita gente da etnia cigana, é um factor de riqueza e de aprendizagem grandes, mas também havia focos de conflitualidade”, diz ela, recusando-se a romantizar, ou noutra vertente, a demonizar, as vivencias ali. O que não esconde é que o seu mais recente álbum é dali. “É impossível nasceres num bairro destes, onde tens música cigana no rés-do-chão, angolana endiabrada no 1º andar e, mais acima, sons electrónicos, ou popular a sair da casa da vizinha, enquanto o meu pai ouvia Bob Dylan ou Zeca Afonso, e não seres marcada por isso. Nasci no meio disso. Adoro uma boa kizomba, rap ou música do Mali. Queria que o disco tivesse essa liberdade. É isso que quero com a música. Escrever o que sinto. E na sonoridade fazer as coisas sem me condicionar. Acrescentando algo.”
A sua aptidão para a música não é óbvia. Não havia modelos familiares, embora existisse uma relação com a matéria das canções no espaço doméstico. “A minha mãe cantava uns fados na lida da casa. O meu irmão mais velho ouvia rap e pop-rock. E o meu pai, que teve vários trabalhos sem vínculo definido, sabia uns acordes à viola. Tenho a memória presente de me adormecer com o Maria Faia do Zeca Afonso. Cantava sempre no mesmo tom, apenas os três ou quatro versos que sabia, repetindo-os. Eu entrava naquele mantra e adormecia a ouvi-lo."
Na infância, e em idade juvenil, sentia na pele a vida do bairro, mas ao mesmo tempo refugiava-se, não na música, mas na escrita. “Era o meu lugar. Sempre escrevi sobre uma certa dicotomia interna, entre fazer parte deste contexto, mas também haver um vazio que não encontrava preenchimento aqui, apesar do meu enraizamento – porque é aqui que venho em momentos em que sinto que estou um pouco à deriva.”
Gravava cassetes a cantar e na escola era estimulada pela professora no processo de escrita. “Era envergonhada, mas ela incentiva-me a libertar a imaginação, dizendo-me que tinha jeito para a música.” O pai acaba por metê-la a aprender piano numa escola de música, enquanto em casa praticava num pequeno teclado que a custo havia sido comprado. A aprendizagem durou um ano. “Não era sustentável continuar a ter aulas quando mal havia comida na mesa.” Na escola, dizem-lhe que poderia continuar sem pagar, mas ela recusa. “Já estava na natação sem pagar quotas, pelos mesmos motivos, e não queria repetir a história no piano.”
Quando deixa o piano, a música é posta de lado. Um dia vê uma amiga, Solange Rodolfo, a tocar viola, e maravilha-se. “Fazia-o bem, era de uma família moçambicana onde toda a gente tocava, e dei por mim a pensar que também queria aquilo para mim.” Começou a dar mais atenção à viola. Tinha 15 anos. Estava a descobrir-se como adolescente. “Apaixonei-me pelo irmão dela e ela pelo meu”, ri-se. “E acabámos a fazer uma canção para os respectivos irmãos.” Foi a sua primeira canção.
Outras se seguiriam, com o amor como lema. “Lia Florbela Espanca, sabia os poemas de cor, e a sua escrita marcava a minha”, afirma, recordando que, na Faculdade de Letras, onde estudou Comunicação e Cultura, foi importante o encontro com uma outra pessoa: Tiago Morais. “Viu-me cantar e ficou impressionado, mas também me disse que tinha de ser mais exigente com a minha escrita, sendo mais assertiva. Ele vinha de Berlim, era o tipo que tinha mundo, e fiquei muito impressionada com a sua bagagem e o que ele trazia de outros artistas e universos de arte.”
Depois da faculdade seguiu-se uma formação de jornalismo no Cenjor, a rádio – “a Popular FM, com o José Manuel Rosendo, com quem trabalhei quatro anos na feitura da agenda cultural”, recorda – e o ensinar inglês e natação, para “ganhar a vida.”. Pelo meio deixa o bairro 2 de Abril. “Estava com 26 anos e precisava urgentemente de respirar outros ares. Não tinha casa e fui viver uns meses para uma roulotte num parque de campismo”, recorda, mencionando os paradoxos de, no bairro, habitar num círculo social de muita proximidade. “Por um lado, recebes imenso, constroem-se laços muito fortes, mas também aspiras conflitos densos.”
Fala de famílias desestruturadas. De pais de amigos que batiam nas mães, depois de noites de álcool. De haver quem passasse fome. “A minha mãe chegava a casa a chorar porque havia encontrado uma vizinha com cancro que dizia que a estavam também a matar de fome. Havia um envolvimento intenso. A minha mãe vivia os problemas dos outros assim e eu absorvia-os também, sem a sua maturidade. Aquilo magoava-me muito, porque eram situações que não conseguia resolver.”
A música foi estando lá, mas ia sendo adiada. “Ainda não tinha encontrado a minha linguagem. Já tinha percebido que queria falar de coisas que me são urgentes como ser humano e cidadã, mas não sabia como chegar lá.” Experimentou formações e linguagens, do jazz ao Brasil, com amigos, mas sentia que não era por ali. “Houve experiências, com o Valter Rolo, por exemplo, que me deu confiança, mas não sentia que fosse ali o meu lugar. Até que a minha mãe morreu, o meu pai foi viver para o pé de mim e tornou-se amigo do músico Sérgio Mendes.”
Guitarrista e membro de várias formações (Mazgani, Hands Of Approach), Mendes é hoje o co-produtor de A Garota Não. “Um dia ele vê-me a tocar no alpendre da casa do meu pai e diz-me para lhe enviar as minhas músicas e assim fiz.” A colaboração entre os dois segue-se. “Pude expressar em linguagem musical o que queria. Dizia-lhe: ‘Olha Sérgio, aqui sinto uma guitarra, ou, aqui gostava de um som de clarinete.” Ele não imponha nada. Estava disponível para a ouvir. E foram gravando.
“O primeiro álbum demorou quase quatro anos a registar. As músicas eram pessoais. Às vezes escrevo sobre a vida dos outros, mas aquilo expunha-me como ser humano e eu queria perceber como funcionaria o meu estado de espirito, a forma como iria aquilo ser apreendido.” Tinha 35 anos quando o álbum Rua das Marimbas n.7 acabou por ser lançado.
No mundo da pop pré-fabricada, saída dos concursos televisivos, dir-lhe-iam que chegava tarde de mais. Para ir à sua vida. Mas ela acabara de chegar e não virou costas. O segundo álbum saiu há meses e é excelente. A sua visibilidade é crescente, embora merecesse muito mais nesta fase. Ela ri-se quando lhe dizemos isso e sem falsas modéstias diz apenas que está a seguir o seu rumo, ao seu ritmo. Nisto, uma outra ex-vizinha passeia o cão, e uma outra compõe a roupa, toda ela em tons cor-de-rosa, num estendal. Trocam-se palavras de estima mútua. Neste caso, sabem que Cátia é a artista A Garota Não, mas são outros os temas que dominam a interacção. A família, outros bairros, outras vidas. Às tantas perguntamos-lhe se o disco terá sido uma forma de se reconciliar com a sua memória, e o presente, do bairro. “Isto é um processo”, pensa um pouco. “Vou-me reconciliando. Mas não é com o bairro em si. Tem mais a ver com o facto de ainda não nos cumprirmos enquanto sociedade e comunidade. É mais isso que ainda anda em turbilhão dentro de mim.”
E sem parar: “Se tenho alguma consciência cívica, de humanidade, adquiri-a aqui. Não sei como seria crescer num bairro privilegiado, no seio de uma família abastada, e não creio que seja o contexto a condicionar-nos na totalidade, mas isso é claramente importante. A nossa visão é muito do que respiramos em idades fundadoras. Neste bairro vivi tantas coisas. De um trapo inventávamos o mundo. Isso continua a guiar-me. E depois há todas as histórias em que as pessoas se reinventavam. À noite ouviam-se ecos de agressividade para com as mulheres, mas de manhã assistia à sua reinvenção, e isso é também incrível, essas vidas. Cresci num bairro com poesia, porque via mulheres desencantadas e lembrava-me de Florbela Espanca. Depois havia os miúdos que choravam no banho como a Adília Lopes descrevia no poema do shampoo na casa da avó.
Havia também o dia-a-dia duro da mulher na família, no trabalho e no colectivo, como na poesia da Francisca Camelo. E há também o António Aleixo, a frustração, o desacreditar na vida, as profissões duras e o pouco dinheiro para alimentar a família toda. Há tantos homens aqui assim. Há essa poesia. Uma poesia de sobreviventes, de quem passa muito, mas mantém-se inteiro e digno.”
Em termos de estética o primeiro disco é mais folk. Os arranjos eram mais simples. A musica tinha de ser expressa daquela forma. “Eram guitarras, uns teclados aqui e ali, e a voz. Não me queria armar em esperta, até porque queria que o que fosse mais notado eram os textos. Não me queria distrair com mais nada. É algo que valorizo.” O segundo álbum sem perder essa respiração folk, contém mais elementos a circular. É mais diverso. Há também mais músicos com ela e alguns convidados. “Gente que admiro como a Ana Deus, o Chullage ou o Fred.”
As suas referências nucleares é que não mudaram e, entre as 20 canções, há uma ou outra que não o escondem. Há uma versão de Fausto. Há uma homenagem a José Mário-Branco. E há também a sombra de Zeca Afonso. “Adoro a musicalidade do Fausto. Tem uma forma muito elaborada de compor. E o Zeca deve ser a figura – não quero ser pretensiosa e pôr-me em bicos dos pés – de quem me sinto mais próxima em termos de composição.” Há dias, lembra-se, estava a compor uma canção nova que se chama 422, e a sombra de Zeca pairou pela sala.
“A canção tem esse nome porque foi o número que apareceu nos jornais dos lucros que a Galp teve no primeiro semestre deste ano. 422 milhões de euros.” Ela queria escrever uma música sobre aquele facto e foi sugestionada por um ambiente e letra sombrios. “Mas, depois, pensei: como é que eu torno isto musical, audível e interessante para quem está a ouvir. E pensei? O que é que o Zeca fazia? Ele tinha esse brilho de conseguir colocar assuntos sérios em músicas alegres. Eu tenho dificuldade. Por norma as musicas são densas, acordes menores. Mas naquele dia gostava de ir mais na linha daquilo que o Zeca fazia. Punha textos duríssimos em músicas que davam vontade de dançar. E fui buscar isso para fazer uma musica algo africanizada. Ele dizia que a música africana tinha muito de transmontano e vice-versa. Percebo isso bem.”
Ao nível temático interessam-lhe assuntos diversos, mas existe sempre um travo sociopolítico em quase todas as suas canções, com a condição da mulher sempre presente. É o que acontece, de forma mais explícita, em Mulher batida, com a violência doméstica em evidência, ou em Que mulher é essa?, onde reflecte sobre quem é preterida por estereótipos.
“É um tempo em que as relações são voláteis, efémeras, trocáveis”, diz, olhando em redor, para as mulheres que passam pela rua. “Quando penso neste território são as figuras femininas, em particular as maternas, que me acodem”, afirma. Em Dilúvio é a chamada “cultura de cancelamento” que lhe merece meditação. São importantes algumas dessas dinâmicas, mas o método merece-lhe reparos. “Esta coisa de estarmos todos munidos de facas nos bolsos e prontos a disparar qualquer coisa contra alguém é tramado. Chateia-me que estejamos tão aguerridos com temas que deviam ser trabalhados com seriedade.”
Em Sede do xega é André Ventura que é glosado, numa canção soturna, com o ritmo em câmara-lenta introduzindo uma atmosfera algo bizarra. “Um dia estava a ler uma reportagem sobre a sede do Chega e tudo aquilo era alienígena, com fotos do líder em grande dimensão na parede, enfim, senti angústia, como se tivesse um submundo estranho à frente.” Em Não sei o que é que fica, com participação de Chullage, é a gentrificação dos centros urbanos que é abordada. “É complexo. É legitimo que quem tenha casas as queira fazer render, mas o alojamento local entrou em total descontrole. Os municípios não conseguem gerir o assunto. E o problema grave é não termos politicas publicas eficazes que protejam as populações. Não se pensa no bem–comum.”
Tantos desencontros é uma das mais esbeltas. O som de uma guitarra serpenteia, hipnótica, por entre sílabas que expressam os paradoxos dos encontros relacionais. “Saber cair é uma ciência”, canta. Na maior parte das vezes, as suas letras são claras, evitando quer o simplismo, como o adorno inútil, enxutas, movidas pela conformidade. As referências são essencialmente da poesia, mas também lê ficção. “Adoro Jorge Amado. O livro que mais me comoveu foi Os Capitães na Areia. Adoro o Saramago, enche-me a cabeça e a imaginação. E o último livro que li foi do Mário Zambujal. Gostei pela ironia, a forma como retrata a vida, a graça com que o faz e os episódios simples e mundanos que convoca.”
Recolhe ideias para as canções em qualquer lugar, a qualquer hora, mesmo se depois precisa da solidão para lhes atribuir sentido. “Algumas frases oiço-as em cafés e esplanadas e são brilhantes sobre a ideia que contêm. Sintetizam uma data de coisas. Outras vezes tudo começa com a frase de um livro. Outras é apenas uma palavra. Outras um assunto. Quando comecei a ler sobre refugiados, pela angústia que me causava, senti necessidade de escrever sobre isso e nasceu Mediterrâneo II.”
Estima muito o processo de composição, não tendo problemas em dizer que, em comparação, os concertos, a deixam ansiosa. “Quando vou para palco fico nervosa. Não é confortável”, diz ela, embora quem já a tenha visto em palco não vislumbre essa dificuldade. Ainda recentemente, no festival Bons Sons, a sua prestação foi enaltecida. Ela ri-se. “Mas aí foi diferente”, defende. “Não ligo muito a festivais, como artista, ou como consumidora. Cansam-me. Não é a minha cena. Gosto de tocar em sítios pequenos, onde sinta que as pessoas vão lá pela minha musica, onde sinta que estou a dignificar o que faço. Mas, é verdade, nos Bons Sons foi diferente. Passei o concerto arrepiada pela reacção das pessoas ao que ia dizendo entre as canções, e ao que eu transmitia com as músicas.”
Tem um acordo com o seu agente. “20 datas no máximo por ano.” É pouco, provocamos. Para já, seguem-se Ílhavo (4 de Setembro), Torres Vedras (17 de Setembro) e Freamunde (23 de Setembro). “Não lido com mudanças muito grandes”, sorri. E não é só isso. “E tenho também um trabalho a tempo inteiro.” Trabalha na câmara de Setúbal. “Adoro ser funcionária pública”, exclama. “Coordeno a equipa da juventude, fazemos a gestão de equipamentos como a Casa das Quatro Cabeças ou a Pousada da Juventude, ao mesmo tempo que se organiza eventos de arte e cultura.” E se um dia tiver que optar entre a música e Câmara?
“Sinto que ainda tenho aqui missões. Temos um plano de trabalho. Há mudanças que têm de ser feitas. Há dever para com a comunidade. Não estamos ali para defender os nossos próprios interesses. É malta que dá imenso de si para dar algo a quem vive aqui. Sinto que faço parte dessa vontade. E isso agrada-me, porque sozinha, mesmo que possa ser uma artista com alguma força na voz, sinto que ali, em equipa, também se conseguem fazer muitas coisas que não conseguiria como cantora.”
Vamos perder uma cantautora aos 38 anos, quando está a alcançar mais visibilidade? “Nada disso, já estou a pensar no terceiro disco”, assegura, pondo-se a divagar. “Se a música me desse um rendimento fixe criaria projectos de âmbito social e animal e cada vez mais vou desenhando essas ideias”, diz, apontando na direcção das árvores, ornamentadas nos troncos com motivos artesanais, criados no contexto de algumas actividades para a 3ª idade. “Ali é a escola primária do Peixe Frito, onde andei. A quantidade de crianças que ia para a escola sem pequeno-almoço era incrível. São esses paradoxos que me movem. Por um lado, aprendemos na escola o quão importante é uma boa alimentação para a aprendizagem, por outro temos crianças que nem um copo de leite tomam antes de ir para a escola.”
E sem parar. “Tenho esse desejo de formar uma fundação do pequeno almoço, desenvolvendo um projecto junto de lugares menos favorecidos, acompanhando essa acção com estudos sérios, para se perceber o impacto que poderia ter no comportamento nas aulas, nas mudanças e no percurso dos miúdos.”
A competir com essa ambição estão as canções. Gosta de estar em casa a escrever, em volta da caligrafia, vendo as canções sair cá para fora. “Esse processo encanta-me e vivo-o com intensidade”, avalia. “Quando acabo uma canção bebo sempre um copo de vinho para celebrar.”
Texto publicado no jornal Público em Agosto de 2022.