DAVID LYNCH: Muito mais do que cinema

David Lynch

Foto: Chris Weeks/Wireimage

Outros haverá. Mas não é por acaso que quatro dos cineastas contemporâneos de universo mais específico, sejam também grandes entusiastas por música. Referimo-nos a Vincent Gallo (tão bom cineasta como músico), Harmony Korine (melhor cineasta que músico), Sofia Coppola (que nunca fez música, mas os seus filmes respiram-na, e tem ao seu lado o cantor dos Phoenix) e David Lynch (até agora melhor cineasta que músico).

Todos eles referem com assiduidade que a música é uma das suas maiores referências no momento de criar. E na verdade não é difícil ouvir alguma música moderna e imaginarmos de imediato uma pequena vila como “Twin Peaks” de Lynch, onde os segredos mais interiores acabam por se manifestar no exterior, ou vislumbrarmos as “Irmãs Suicidas” de Sofia Coppola, reproduzindo a suspensão alvoraçada das comoções juvenis.


São filmes evocativos. São canções evocativas. São sonhos, que tantas vezes depois de satisfeitos, criam apenas vazio e mal-estar. É música crepuscular, a hora perfeita para fixar a fugacidade dos estados psicológicos. Aquela ocasião em que termina o dia antes de chegar a noite, quando personagens confundidos na paisagem descem à profundeza de si próprios, libertando-se de qualquer tipo de censura, fazendo surgir o desconforme e o inexplicável.

Quando o obscuro irrompe na normalidade pensa-se de imediato em David Lynch, 65 anos, que se prepara para lançar o seu verdadeiro primeiro álbum a solo, “Crazy Clown Time”, depois de várias colaborações relevantes no passado, nomeadamente com o compositor Angelo Badalamenti (“Twin Peaks), com o pianista polaco Marek Zebrowski (“Inland Empire”), com o músico John Neff no projecto Bluebob, ou com Danger Mouse e o falecido Mark Linkous (Sparklehorse), na obra “Dark Night Of The Soul”.



Mas mesmo que David Lynch nunca tivesse feito música, a sua influência nunca foi tão preponderante como hoje. É até bem possível que a música criada por Lynch seja bem menos interessante do que aquela que é influenciada por Lynch. O seu nome tornou-se mesmo adjectivo para muitos melómanos.



Por música “lynchiana” entende-se um tipo de sonoridade voluptuosa, com alguma dose de risco, normalmente mais murmurada que cantada e com um imaginário onde a realidade mais mundana pode combinar na perfeição com a mais macabra, qualquer coisa de dimensão mental, uma atmosfera de pesadelo ou de romantismo impossível, nunca definidas de maneira exacta.


O arquétipo ataca essencialmente as cantoras, daquelas que deixam um mistério no ar atrás de si, como Lana Del Rey, Bat For Lashes, Anna Calvi ou Chrysta Bell, que acaba de lançar o álbum de estreia, “This Train”, produzido pelo próprio Lynch. A própria já veio dizer que o realizador, no papel de produtor, a dirigiu como se fosse uma actriz. “Ele pensa por imagens”, disse.


Um dos mais influentes cineastas das últimas décadas (“Blue Velvet”, “Wild At Heart”, “Fire Walk With Me”, “Mulholland Drive”, “Lost Highway”), o americano já não realiza uma longa-metragem desde “Inland Empire”, de 2006, culminar de um percurso iniciado em 1977, em termos de longa-metragens, com o monocromático “Eraserhead”, antecedido por algumas Curtas.


Mas isso não significa, longe disso, que esteja parado. O que já não lhe parece interessar é a ideia clássica de cinema, optando por fragmentos criativos direccionados para os mais diferentes territórios, seja como pintor, artista visual, actor, ocasionalmente designer, cartoonista, senhor da meteorologia (através do seu dinâmico sítio na internet), mestre de meditação transcendental e até um conhecido empresário de café através da marca Blend.


Recentemente tornou-se também proprietário do Clube Silêncio em Paris, forma de celebrar o mundo multifacetado da criação, já que o espaço irá receber concertos, performances e outros eventos culturais de diferentes áreas. O espaço nocturno, em Montmartre, adoptou o nome do clube do seu filme de 2001, “Mulholland Drive”. O interior, que recria o imaginário dos seus filmes, foi concebido pelo próprio, e o mobiliário e o bar são inspirados nos anos 50, enquanto o palco se assemelha àquele em que Julee Cruise canta no Roadhouse Bar de “Twin Peaks”.

Agora pode também acrescentar sem reservas ao seu vasto repertório de acções, as designações de produtor, músico e cantor. O estilhaçar de soluções criativas apenas apanha desprevenido quem não conhece o seu percurso inicial. É o próprio Lynch a dizer que apenas se tornou cineasta por mero acaso, quando os seus estudos e o seu percurso apontavam para a pintura ou, ainda mais genericamente, para as artes plásticas.


O seu álbum de estreia também acaba por acontecer por acaso. O ano passado, numa altura em que andava a ouvir muita música de dança, resolveu criar o tema “Good day today”, revestido por dinâmicas electrónicas, com a sua voz a surgir alterada digitalmente. O tema acabou por ser tocado numa rádio de Los Angeles, a KCRW, e o animador de serviço, inadvertidamente diz-se, assumiu que seria uma faixa dos ingleses Underworld.


Mais tarde o tema acabou por chegar a Ibiza, levada pelo DJ que a identificara num primeiro momento como sendo pertencente ao veterano grupo inglês. E aí foi ouvida pelos responsáveis da editora inglesa Sunday Best que entraram em contacto com o cineasta e o convidaram a registar todo um álbum de originais.


Sem surpresa, parte das canções, poderiam ser pequenas histórias de filmes seus, misto de paranóias que habitam o interior de cada um, com a realização alucinatória dos desejos mais comuns.

Numa entrevista recente perguntaram-lhe se alguma delas poderia vir a originar uma longa-metragem. De imediato respondeu que “não”. Foi mesmo mais longe argumentando que não tem feito filmes porque não teve nenhuma ideia suficientemente motivadora e porque a indústria do cinema, na fase actual, não lhe interessa muito: “não existe muito espaço para o risco.”


A canção de abertura, “Pinky’s dream”, é cantada por Karen O dos Yeah Yeah Yeahs, numa linha onde as electrónicas entram em contacto com linguagens mais virulentas, um tema que ele descreve como sendo “o horror e a tristeza de perder alguém para outras dimensões.”


No seu conjunto, Lynch classifica a sonoridade do disco como “blues moderno”, com algumas batidas industriais à mistura como já acontecia no projecto BlueBob. É esta a linha seguida por temas como “Crazy clown time” ou o mais atmosférico “So glad”, que poderia ser perfeitamente uma canção da banda-sonora de “O Homem Elefante” (1980).


Lynch toca guitarra e canta – a maior parte das vezes com a voz alterada – tendo gravado todos os temas com o baterista e guitarrista Dean Hurley nos estúdios do realizador em Los Angeles, os Asymmetrical. Ao que parece todas as canções surgiram a partir de momentos de improvisação que depois foram sendo apurados, ganhando formas reconhecíveis e também letras.


Se não soubéssemos que a sua presença no actual cenário musical foi um ocaso, poder-se-ia especular que estaria a tentar rentabilizar o facto de se ter tornado no realizador de cinema que os músicos das novas gerações mais gostam de citar como influência. Não é evidentemente de hoje o crédito de filmes como “Eraserhead”, “Twin Peaks”, “Blue Velvet” ou “Mulholland Drive” nas representações, nas imagens, nas palavras e em muitos dos sons da música popular. Dos Bauhaus aos Pixies, nos anos 80, ou das experiências do próprio Lynch com Julee Cruise e Ângelo Badalamenti, já muito foi dito sobre o assunto.


Mas foi nos últimos anos que aquela espécie de sofisticação excessiva, uma estranheza que é também normalidade, e as alusões sonoras aos anos 50 presentes em tantos filmes seus – quem não se lembra da canção “Blue velvet” de Bobby Vinton? – entraram decisivamente no corpo da música actual, sendo a sua marca reivindicada por uma série de novos protagonistas. É o caso de Lana Del Rey, a americana que se transformou num fenómeno na internet nos últimos meses e que promete causar mais furor quando lançar o álbum de estreia em Março de 2012.


Os seus vídeos e a sua música aludem ao lado mais negro dos sonhos de Hollywood, estrelas ziguezagueantes ou à deriva, como em “Mulholland Drive”. Ouvindo-a e vendo-a – ela diz que é uma “Lolita no meio da floresta” – é como se mergulhássemos na caverna de Lynch, com todas as suas referências estéticas, a velha Hollywood, a América dos anos 50, o conceito de celebridade, tudo desembocando num “glamour” decadente de garrafas de cerveja deixadas no chão em casas luxuosas com piscinas.

Lana vive em Los Angeles, claro, o mesmo acontecendo com a cantora Chelsea Wolfe que ainda há pouco tempo assumia que mergulhava com assiduidade no “surrealismo negro” dos filmes de Lynch. Outro seu confesso admirador é o canadiano Alex Zhang Hungtai – ou seja, Dirty Beaches – o que não surpreende ouvindo algumas das canções do seu recente álbum “Badlands“, uma espécie de Roy Orbinson temperado por imagens perturbadoras da América dos anos 50.


A sua ascendência em algumas das correntes mais alternativas dos cenários pop dos nossos dias é lógica, se pensarmos em nomeações subjectivas como as vagas “chillwave” (Washed Out, Twin Sister, JJ, Toro Y Moi) ou “witch house” (Salem, oOoOO), espécie de espelho reflector uma da outra. A primeira é soalheira, a segunda mais sombria, mas ambas encontram pontos de melancolia em coisas, que à superfície, parecem ser inocentes.


Os Twin Sister, por exemplo, com álbum acabado de lançar (“In Heaven”), confessaram que reviram toda a série “Twin Peaks” enquanto estavam a criar: “o seu universo é estranho, mas ao mesmo tempo muito simples. Gostamos disso”, dizem eles.


Qualquer coisa de semelhante poderiam dizer jovens músicos como Khonnor (álbum “Handwriting de 2005) ou mais recentemente Perfume Genius, que se estreou o ano passado com o álbum “Learning”. Qualquer deles expõe uma vulnerabilidade à flor da pele, evocação dos anos confusos da adolescência. A música deste último foi sendo descoberta também pelos vídeos. Veja-se “No problem”, uma rapariga debaixo de água, em câmara lenta, fixa-nos, ajeitando o cabelo, no meio de um manto electrónico que remete para as composições de Badalamenti em “Twin Peaks”.


Dois dos nomes que Lynch mais cita como sendo dos seus favoritos no universo da pop actual são a sueca Lykke Li e as americanas Au Revoir Simone, com quem já actuou. Faz sentido. Apesar de diferentes, em ambos os projectos existe candura, encenação da inocência, que se revela perversamente sensual.


Um dos projectos mais fascinantes da última década, os suecos The Knife, também assume a sombra de Lynch. Os irmãos Olof e Karin Dreijer (ou seja, Fever Ray, quando a solo), nos vídeos, nas roupas e na concepção dos espectáculos ao vivo, compõem um universo de realismo mágico, assente em criaturas bizarras e situações surrealistas, tudo isto complementado por uma electrónica glaciar, inquietante, de som metalizado e vozes inumanas, que resulta na encenação de quadros neuróticos.

Nos vídeos há hermafroditas, marinheiros, viciados na TV, donas de casa intimidadas, cantoras loiras abandonadas num karaoke nórdico, mescla de matéria dos sonhos e de realidade quotidiana no sentido mais trivial, num cosmos perturbador. Na forma como se apresentam, os The Knife, mas também a inglesa Plannintorock (do álbum deste ano “W“), as americanas CREEP e Zola Jesus ou a também sueca Iammiwhoami, operam algures numa zona recorrente em Lynch: a sexualidade associada ao mal, os corpos transformados, a descoberta da beleza no grotesco, o confronto entre consciente e inconsciente.

Mas apesar da música e do imaginário de Lynch estarem por todo o lado, não esperem que ele venha a actuar num palco perto de si. “Eu tenho um desejo”, ironizava recentemente, “gostava de ser Elvis!”, assumindo-se como não-músico. “Gosto de procurar, gosto de improvisar, mas voltar a tocar aquilo que criei não. Não sou músico, nem cantor”, acrescentava. Talvez seja verdade se olharmos o que diz por um prisma clássico. Mas se tivermos uma visão mais ampla e descomplexada é difícil imaginar alguém tão preponderante nos caminhos da música actual como ele.


Texto publicado no jornal Público (Ipsílon) em Outubro de 2011.

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