LCD SOUNDSYSTEM: “Agora falam bem, mas daqui a meses pode acontecer que nem se lembrem de nós”
Foto: DR
O primeiro álbum dos LCD Soundsystem foi editado em Fevereiro de 2005. Completam-se, por isso, 20 anos por estes dias que foi lançado esse disco homónimo, que continua a ser talvez o mais impactante dos anos 2000, com ressonância ainda na atualidade. Quase um ano antes, em Maio de 2004, havia entrevistado, pela primeira vez, James Murphy, quando já se pressentia que os LCD iriam dar que falar. É esse artigo que agora partilho.
James Murphy é alguém que tem uma visão global sobre a música, que a experimentou, que relativiza os mecanismos de funcionamento da indústria, e que é capaz de expor de forma personalizada todas as experiências vividas, sejam as do passado do rock alternativo, ou as do presente das linguagens dançantes. Há dois anos formou a editora DFA, produziu grupos de hip-hop como os Automato, do rock como os The Rapture ou dos experimentalismos como os Black Dice e em todos deixou a sua marca.
Ao mesmo tempo formou o seu próprio projecto, os LCD Soundsystem, responsáveis por alguns dos singles mais avassaladores dos últimos anos, (“Losing my edge”, “Give it up”, “Yeah”), actua como DJ por todo o mundo e canta nos mais recentes álbuns de Felix Da Housecat ou DJ Hell. É Rei em Nova Iorque, onde das margens (TV On The Radio, !!! ou The Rapture) ao centro (Bowie, Madonna, The Neptunes) todos o enaltecem. Em Março, em Miami, descobrimos que por detrás do produtor e editor existia também a pulsão do cantor, num dos primeiros concertos dos LCD, onde expunham música catártica e minimalista para teclados, bateria, baixo e voz. Um furacão de rock e electrónicas onde andam às voltas o grito, os Can e os os Liquid Liquid. Há alguns dias falámos com Murphy.
P.- Em Março, em Miami, num concerto dos LCD, surpreendemo-nos pelo seu desempenho em palco. Tínhamos a imagem do homem de estúdio. E, de repente, ali estava alguém que estava perfeitamente à vontade naquele contexto.
R.- Obrigado, mas esse concerto não serve de exemplo porque estava com uns copos a mais... [risos]. Mas gosto de concertos, sem dúvida, apesar do meu aspecto físico me embaraçar...[risos]. Subir ao palco coloca-me num estado de grande excitação. Gosto da realidade à minha frente, das pessoas, dos corpos. Com os LCD tento criar uma atmosfera de algum risco – detesto bandas que são perfeitas a tocar e que não arriscam. O que mais me excita na música actual, e é um paradoxo, é o facto de a maior parte das bandas e editoras serem porcaria. A sério: nós não somos muito melhores, somos apenas pessoas em palco a dar o melhor de si, mas não temos pose, nem temos aquela atitude sofrida da maior parte da música de hoje.
P.- É cantor, produtor, DJ e é um dos responsáveis pela editora DFA Records. Faz tudo parte do mesmo universo, mas deve sentir-se mais confortável em alguns desses papéis do que noutros.
R.- Sinceramente, não consigo separá-los. Gosto de estar em estúdio a experimentar, mas também me agrada poder confrontar o público com aquilo que faço nas minhas sessões DJ. Adoro descobrir bandas novas que me entusiasmam. Faz parte da mesma coisa, mas não me sinto particularmente confortável em nenhum desses papéis. Não quero sentir-me confortável. Queria sentir-me confortável se fosse médico e tivesse que tratar doentes, mas ninguém vai morrer se ouvir um DJ cantar ou um músico experimentar sons inusitados e essa liberdade agrada-me. Coloco-me em causa e na maior parte das situações sinto-me pouco confortável.
P.- Grupos que já estiveram em estúdio consigo como os The Rapture, Automato ou Black Dice afirmam que, quando está nesse contexto é muito metódico, o que contraria um pouco essa análise.
R.- Sou metódico, o que não quer dizer cerebral. Sou muito trabalhador, estruturo o meu trabalho, mas a partir dessa base permito-me improvisar. Só podemos improvisar a partir daquilo que já conhecemos – tenta-se criar, por exemplo, uma linha de baixo diferente de qualquer outra que já se ouviu. É uma reacção. Quando se improvisa fora de uma estrutura podem-se alcançar resultados interessantes, mas na maior parte das vezes isso não sucede, inclusive comigo. Não sou um grande músico, por isso é importante definir regras, saber o que se quer e ter uma linha condutora.
P.- Qual é o seu papel, hoje em dia, na editora DFA?
R.- Faço um pouco de tudo. Produzo as bandas em conjunto com Tim [Goldsworthy], faço trabalho burocrático com Jonathan [Galkin] e tento estar atento para encontrar novas bandas. O meu parceiro, Tim, tem feito mais do que eu nos últimos tempos porque tenho andado às voltas pelo mundo. Passo a semana em Nova Iorque e, ao fim de semana, ando por aí. Agora estou em digressão com os LCD. Não é fácil, mas faz parte do mesmo plano. Queremos crescer lentamente, e penso que temos conseguido resultados interessantes.
P.- Têm surgido uma série de designações para tentar identificar o universo DFA. A mais comum é punk-funk. O termo incomoda-o?
R.- Sinceramente, não me importo. Sei que estou envolvido num meio, como a música, onde esse tipo de designações aparecem e desaparecem à mesma velocidade. Faz parte do jogo. Não é bom, nem é mau, é assim. Não vale a pena perder muito tempo com esse tipo de coisas. Sei do trabalho que fazemos na DFA, acredito nele, e isso é que importa. Entre os The Rapture e os Black Dice existe um mundo de diferenças e as pessoas realmente atentas sabem-no. Para mim, a DFA, é a base: é como fazer parte de um colectivo de artes visuais ou de uma companhia de teatro. São os meus amigos, os cúmplices, as pessoas com quem trabalho. É uma família, é o mundo onde nos permitimos fazer aquilo que nos apetece. É aquilo que nos mantém a salvo do mundo exterior.
P.- A sua família cresceu nos últimos anos. Trevor Jackson, 2 Many DJs, Metro Area, Hell ou Black Strobe partilham afinidades consigo.
R.- É verdade, a minha família alargou-se nos últimos anos e estendeu-se para países muitos diversos. Existe uma ligação forte entre nós. No fundo, é a história da música: pessoas conhecem-se, começam a falar de música, descobrem influências semelhantes e mantém-se em contacto. Quando nos encontramos somos como qualquer outro puto que fala do último disco que descobriu. Mas não somos uma “cena”, seria um disparate dize-lo. Se as pessoas voltaram a ouvir guitarras nas discotecas não vamos colocar guitarras em todas as músicas que fazemos porque tem “pinta”.
P.- O ano passado afirmou que o álbum dos The Rapture surgiu com um ano de atraso. Não receia que venha a acontecer o mesmo com os LCD Soundsystem que têm criado enorme expectativa com os singles?
R.- Não sei se o álbum dos The Rapture foi editado tarde de mais. Para mim foi-o, mas para todas aquelas pessoas que nunca tinham ouvido falar deles, ou sequer ouvido algo parecido, não o foi. É difícil de dizer. Estou consciente que existe expectativa à volta dos LCD e que, quando mais tarde lançarmos o álbum, tanto pior, mas também não quero fazê-lo de forma precipitada. Era para sair em Outubro, mas casei-me entretanto, gosto de viver, parei o processo, e o disco só sairá em Janeiro de 2005. Temos que fazer imprensa, um vídeo para o single – enfim, o normal nestas situações – e não quero que a qualidade global se ressinta. Somos profissionais, gostamos de participar em todas as fases do processo criativo e tentamos fazer algo de que nos orgulhemos no futuro. Sabemos como é que as coisas funcionam – agora toda a gente fala muito bem de nós, daqui a seis meses ninguém se lembra de nós, depois voltamos à crista da onda. Enfim, queremos fazer algo com substância.
P.- A sua actividade tem provocado opiniões desencontradas. Há quem o veja como um renovador da música moderna e quem ache que se limitou a reescrever o passado, inspirando-se no legado do pós-punk.
R.- Quem diz que nos limitamos a perpetuar o passado é ingénuo, mas quem diz que viemos salvar a música também. São o mesmo tipo de jornalistas, com o mesmo tipo de pensamento, incapazes de pensar aquilo que têm á frente com algum distanciamento. As pessoas que nos amam, odeiam-nos pela mesma razão. É pura ignorância. Estou agradecido a alguns jornalistas que compreenderam aquilo que estávamos a fazer – permitiram-nos sair dos guetos, seja da dança ou do mundo ‘indie’ – e isso ajudou-nos. Supostamente o mundo das editoras independentes deveria ser aberto, mas foi nesse contexto que encontrei pessoas fechadas – daquele género de estarem sempre a julgar sem antes compreenderem o que se passa à sua volta. Não tenho paciência.
Da nossa parte, limitamo-nos a fazer aquilo que nos apetece. Temos influências, como toda a gente, e tentamos reflectir aquilo que somos. Olhamos para períodos da história que nos podem ensinar qualquer coisa, como os 70s dos Roxy Music, T-Rex, Can, Suicide ou Velvet Underground. Temos mais a ver com o Bowie do que com os Liquid Liquid. É interessante olhar para o passado, mas isso não significa transportá-lo deliberadamente para a nossa música. Se tivesse uma banda pop seria estúpido não ouvir The Smiths, mas seria mais estúpido se os tentasse replicar. Hoje em dia, o que faz a diferença, nas diferentes correntes musicais, são as personalidades fortes. Foi isso que me apaixonou nos The Rapture. Estou-me nas tintas para essa história do regresso do rock. O que me interessa é a voz individual que cada um consegue transportar. Quando entro em estúdio a única promessa de novidade que posso dar é que vou ser eu – não serei o primeiro a utilizar aquela bateria ou aquele som electrónico, mas posso introduzir algo novo se tiver capacidade para expor o que sinto, ter confiança nas minhas escolhas.
P.- Começou em bandas punk, mas acabou legitimado pela cultura DJ o que não deixa de ser irónico para quem durante muitos anos nem sequer podia ouvir falar em géneros como a música house.
R.- É verdade. Até 1999 não podia ouvir falar em música de dança. O único álbum que alguma vez comprei foi dos Dee-Lite. Sempre detestei drum ‘n’ bass e house, mas hoje sinto-me confortável nos clubes de dança. Em muitos aspectos é uma cultura mais aberta do que o rock. É difícil generalizar, porque existem coisas que também não me agradam como o trance progressivo, mas diria que encontrei mais petulantes no rock do que na dança. A dança é sinónimo de liberdade, prazer e eu adoro dançar...[risos]. É uma maneira saudável de fazer e partilhar a música.
P.- Nos EUA o hip-hop e o R&B tornaram-se na música dominante destronando o rock que dominou o mercado ao longo de décadas. Na Europa ainda não se avalia a revolução que esse facto representa. Que transformações podem ocorrer com este dado novo?
R.- Possivelmente a coisa melhor da América é o poder da cultura negra. É algo único no mundo. Não existe outro lugar assim. Existe muita gente a fazer boa música que está nas tabelas de vendas, mas há muito hip-hop e R&B a ser tocado apenas porque representa a cultura dominante, o que torna as coisas um pouco repetitivas. Ou seja, do rock passámos para o hip-hop, mas a lógica que preside ao domínio de um sobre os outros não se transformou. É por isso que são necessários novos desafios. Nos anos 70 a rádio nos EUA era fantástica, com diversidade e qualidade. Quando a maior estrela do mundo é David Bowie, como nos 70, é sinal de que a fasquia é elevada. É sinal de que existem pessoas complexas, que podem ser estrelas. Hoje, olho à volta e não vejo nada semelhante. Não me interpretem mal, claro que gosto muito dos OutKast e dos The Neptunes e sinto-me satisfeito por serem grandes, mas quando a coisa mais bizarra que passa na MTV são eles é porque algo está mal – e estou a ignorar deliberadamente coisas como Marilyn Manson ou Slipknot. Isso não é música que nos faça sentir complexos, é apenas a ‘Noite das Bruxas’. A meio dessa fasquia também não se passa nada de especial. Preferia remisturar a Madonna do que qualquer uma dessas bandas médias do rock, muito sensíveis, pertencentes a multinacionais, que apenas querem credibilizar o seu trabalho com “aquele tipo de quem agora se fala, um tal de James Murphy”.
Texto publicado no jornal Público em Maio de 2004.