Mujica, o PIB e as eleições: Não há outro futuro porquê?

Foto: Valuks

Veio em todos os jornais e telejornais, e as redes sociais trataram de ampliar a notícia: morreu Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, mas muito mais do que isso, símbolo de alguém que, apesar de não ter mudado o mundo, como o próprio reconheceu, no processo de o tentar, conseguiu viver uma vida plena, lutando por liberdade e maior igualdade, com afeto, saber, despojamento, solidariedade e cultura, ao mesmo tempo que as suas palavras, exemplo e forma desarmante de ser, foram conquistando, com os anos, uma enorme ressonância global.

Nos últimos dias, sublinhando a sua morte esperada, milhões de pessoas escreveram – e eu também, claro – nos seus murais que Mujica havia sido um exemplo de coragem, de alegria de viver a vida como realmente professava, longe das lógicas dominantes da acumulação, do egoísmo individualista, da competição, do capitalismo, do neoliberalismo.

Há uns anos, a propósito de uma frase de Salman Rushdie, “o amor é o único assunto, na vida humana tudo é acerca do amor ou da sua ausência”, escrevi um texto que falava desse paradoxo: enaltecemos frases como essa, ou exemplos como o de Pepe Mujica, e desde que acordamos, até ao deitar, fazemos exatamente o contrário.

Gostamos de pensar que os afetos, o saber, a cultura, o ter tempo, são o que de mais importante existe na vida. Mas praticamos o contrário desde praticamente o berço. Começa, por norma, quando desejamos abraçar o curso que idealizámos desde miúdos, mas acabamos noutro qualquer, porque nos é incutido que o que queremos não tem saída profissional.

Triunfa a ideologia disfarçada de pragmatismo. Mas na morte de Mujica, e ocasiões semelhantes, os olhos brilham e agarramo-nos ao que nos faz sentir vivos, ao que atribui sentido à existência, ao que produz entendimento. Percebemos que aquilo que consideramos inútil como valor de mercado é tantas vezes o mais útil como valor de vida.

Existe uma espécie de suspensão. E de seguida, encolhemos os ombros, e voltamos à existência da produção e consumo. A dimensão humana, o prazer, a reflexão, são esquecidos. Voltamos à vida precária, baratas tontas lutando entre si por migalhas, enquanto os “senhores do mundo”, lá do alto do seu poder, sorriem por perceberem que conseguiram pôr a competir os de baixo. Tudo o que não contribui para o PIB é esquecido.

Nas últimas décadas descurámos o saber, a cultura, a ciência, o desejo de compreender, esse sim, inesgotável, ao contrário dos recursos do planeta. E tudo se resume ao PIB, ao crescimento económico, à corrida ao armamento, ao encontrar bodes expiatórios como os imigrantes, à atribuição de culpas entre partidos como os putos no recreio, iludindo grandes diferenças de ideias que, em muitos casos, são ficção? Não tem sido isso a campanha eleitoral e as eleições que se aproximam?

Estão sempre a dizer-nos: não existem alternativas, não há outro futuro. Mas, ao celebrar uma figura como Mujica, não estamos a dizer a nós próprios que desejamos outras formas de viver esta vida? Não temos é coragem de a viver. E sentimos a impotência de lutar contra um sistema que nos silencia. E nem sabemos como nos organizar, enredados numa teia que passa o tempo a anular essa potência de haver muita gente que quer outro futuro, para lá da mera sobrevivência, mas que vive atomizada, fragmentada, a trabalhar até ao fim em empregos de merda, sem tempo para nada, correndo apenas para pagar contas.

Há poucos dias aconteceu algo semelhante com o apagão. É verdade, foram apenas algumas horas, mas aquele tempo não nos revelou, de repente, outras possibilidades de existir? Passam o tempo a meter-nos medo em caso de situações semelhantes. E a maior parte fez o contrário. Ajudou-se. Sim, houve incerteza. Mas aquilo que a maior parte dos meios de comunicação desejavam que acontecesse – o caos – não ocorreu. As ruas foram tomadas por alegria, o trânsito auto regulou-se, as pessoas conversaram. Não me lembro de ter visto um polícia na rua.

Não precisámos de uma voz de comando vertical. Em vez de tensão, relaxamento do coletivo, como escreveu Amador Fernandez-Savater, acerca do contexto espanhol, mas o que aconteceu em Portugal foi semelhante. O tempo tornou-se abundante sem a aflição crónica do ter de produzir e competir. Caminhou-se, houve lazer, teve-se por momentos uma vida como a idealizada por Mujica. E até se ironizou com aqueles que se lançaram ao consumo desenfreado, como fazemos todos os dias. Finalmente, essa palavra tão gasta nos últimos tempos – empatia – teve o seu dia. Houve abertura ao desconhecido, ao cuidado coletivo.

Por momentos outras imagens de bem-estar foram surgindo para além daquelas que o mercado nos apresenta. Existiram experiências totalmente diferentes destas? Sim, claro. Se a situação se prolongasse iria piorar? É possível. Mas aquelas horas provaram que algo que receamos pode mesmo existir. Não foi isso que Mujica passou a vida a dizer? Que existem outras possibilidades de existir e que temos de recusar essa noção que nos debitam a toda a hora de que as coisas são como são?

Eu sei o que já estão a pensar os espíritos cínicos ao ler isto. Imagino que Mujica deva ter ouvido o mesmo toda a vida. “Olha-me este sonhador, agora com estas balelas! Vai mas é para a Venezuela! Ou para a Coreia do Norte ou Marte!”, que é a forma, dual e infantilizada, que têm de meter medo às criancinhas. E ele terá respondido: estou farto de viver no vosso sonho que se transformou em pesadelo, vivemos hoje no interior de um cadáver – o neoliberalismo em putrefação, uma sociedade que continua a professar a ilusão do crescimento económico infinito, incapaz de justiça social, ambiental e democrática, servindo apenas uma minoria, por isso são necessárias propostas progressistas claras, que em vez do medo, não receiem imaginar outras formas de estar socialmente.

A esquerda, nos últimos anos, não apenas em Portugal, mas por todo o lado, deixou de imaginar outros futuros, ocupada que esteve a preservar o que conquistou durante décadas, lutando contra uma direita conservadora ou extrema-direita que tudo quer rasurar. Talvez seja a hora de assumir uma tarefa maior, de médio, longo prazo. Sim, assumir que provavelmente perderá algumas eleições, mas refazer-se ideologicamente, não recear apresentar outras possibilidades de sermos e de estarmos coletivamente. Somos muitos a desejá-lo, mas com receio de o assumir. Existe uma potência que se vislumbra nestes momentos rituais que precisa desse alento. É preciso atribuir-lhe um sentido preciso.  

 

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