O ódio à igualdade
Na segunda-feira a seguir às eleições escrevi qualquer coisa que, a mim, me parece óbvio. O universo de cidadãos que votou em Ventura não é homogéneo. Há claro, aqueles que votam por convicção, ou interesses específicos conectados com redes de poder, mas também os que já não se sentem representados pelo centro político, nem foram conquistados pela esquerda, existindo na raiva, até no niilismo e no desejo de reparação difícil de alcançar.
Como sintetizou José Carlos Mota, “para os cidadãos esquecidos, zangados e desconfiados deste país, o voto é uma arma. A única que têm para tentar mudar a realidade. No domingo usaram-na. Podemos lamentar o alvo, criticar o uso, ou oferecer melhores alternativas.” É isso. Não se trata de pensar que a extrema-direita tem soluções. A não ser que a solução para a crise da democracia seja acabar com ela, e o combate às desigualdades seja simular que se afronta os poderes instalados, mas acossando apenas os mais fragilizados
Dito isto, é justo que se diga que coabitam na sedução por Ventura, duas lógicas diversas. Há cinco anos, interrogava, com este mesmo título, a partir da teoria da “paixão pela desigualdade”, de Jacques Ranciére: “E se o poder de atração de figuras como Ventura não colhesse junto de nenhuma classe em particular, não tivesse que ver com sentimentos de reparação, mas sim com a manutenção de privilégios a todo o custo, contra aqueles que desejam pô-los em causa? Ou como defende Ranciére, “a paixão pela desigualdade” não escolhe classes e contextos.”
Ou seja, é algo onde se mistura o material com o existencial, o racial com a cultura patriarcal, e que permite, segundo diversas camadas, independentemente de falarmos de ricos, remediados ou pobres, encontrarmos uma multidão de inferiores sobre os quais devemos manter a superioridade. Homens em relação a mulheres. Mulheres brancas em relação a negras. Trabalhadores sobre desempregados. Locais sobre imigrantes. Heterossexuais sobre população LGBTQ+. Os que podem ter assistência privada sobre os que dependem dos serviços públicos. E por aí fora. As hipóteses são infinitas.
É fácil encontrar alguém que consideramos mais inferior e desfrutar da superioridade sobre ele. A manutenção dessa supremacia relativa depende da inferiorização sistemática, não escolhendo territórios e camada sociais. Vivemos imersos na cultura da desigualdade e rodeados de instituições que na sua ação a fomentam. A manutenção do ódio à igualdade vem também daí.
Na desconstrução dessa lógica corre-se o risco de a balança cair ainda mais para a direita. Mas pode ser também a hipótese de a esquerda voltar a ter um verdadeiro horizonte estratégico. Nesse sentido, a possível desagregação do bipartidarismo pode não ser uma má notícia.
Ou como escrevia, ontem, António Contador: “O PS já não é o último bastião, o limite aceitável duma postura de esquerda. Essa é a grande vertigem. Era, talvez, preciso chegar aqui para pensar: e agora? Nos escombros desta batalha perdida por uma esquerda atomizada e acorrentada aos seus tótemes, que liderança irá surgir? Que linguagem? Que ênfase? Que energia? Ninguém do espectro vasto da esquerda existente parece encarná-lo. Terá que vir, provavelmente, de fora, liberto dos truques dos fiéis obreiros de sempre. Terá que pensar por fora.”
Tempos difíceis estes, complexos, perigosos, mas também desafiantes.