Recuperar a humanidade perdida com Günther Anders
O piloto Claude Eatherly tinha 26 anos quando, depois de meses de treino militar, fez o voo de reconhecimento a Hiroxima, no contexto da missão de lançamento da bomba atómica sobre a cidade japonesa. O objetivo era relatar as condições climatéricas na manhã de 6 de Agosto de 1945.
“Avancem”, foi o veredicto. Morreram cerca de 200 mil pessoas. Paul Tibbets, o piloto do Enola Gay que lançou a bomba, nunca se arrependeu. “Sou um soldado, deram-me uma ordem e cumpri-a Se morreram milhares de pessoas não tenho a culpa. Não o decidi e ignorava-o”, haveria de dizer.
Com Eatherly foi diferente. Também não tinha um quadro completo sobre a missão e não sabia o que continha a bomba e qual seria o seu impacto. Mas nunca mais foi o mesmo. Depois do massacre esteve dias sem falar com ninguém. No regresso aos EUA foi o único dos participantes na missão que recusou honrarias militares e o papel de herói que lhe foi outorgado.
O mundo celebrava. Ele recusava-se a festejar a destruição como sintoma de um progresso que ignorava o sofrimento. Mais tarde tentou o suicídio e realizou pequenos e bizarros delitos, como se quisesse autopunir-se ou ser castigado. O poder, para quem se tornou incómodo, internou-o numa instituição de saúde mental. Foi aí que o filósofo alemão, de origem judaica, Günther Anders (1902-1992) se interessou pelo seu caso, acabando por trocar correspondência com ele entre 1959-61.
No total são cerca de 70 cartas, reunidas na fascinante obra “El Piloto de Hiroshima” (edição espanhola) que ando a ler. É de grande atualidade. Para o filósofo, primeiro marido de Hannah Arendt, o ser humano iniciava nessa vertigem a hipótese da sua autodestruição, constituindo o piloto a recusa desse cenário, fugindo da fama e dos que o glorificavam, e não se resguardando na desculpabilização: a depressão era a prova de não se via como uma peça inocente numa engrenagem sistémica.
Anders foi o primeiro a dizer-lhe: “não estás louco! Na verdade, és o único ser humano são e lúcido nesta sociedade doentia, indiferente ao horror do apocalipse.” Não é onde estamos hoje? Não é apenas Gaza, o silêncio ou cumplicidade dos políticos ocidentais, e a impotência dos cidadãos. É também o bombardeamento sistemático da Rússia e de outros conflitos pelo globo. É a conjugação de capital e tecnologia. A destruição ambiental do planeta, sem que tenhamos total consciência dos nossos gestos.
É a ameaça existencial iniciada pela era nuclear. São os impactos da tecnologia que ultrapassam a nossa capacidade de compreensão sobre os seus efeitos. É a alienação e perda de sentido, diante de redes e sistemas automatizados. É a cegueira apocalíptica, como vaticinou Anders, a partir de Hiroxima.
Não espanta que o italiano Franco ‘Bifo’ Berardi diga que Anders é o pensador crucial para compreender os dilemas éticos e existenciais do nosso tempo, partindo da ideia de que o ser humano produz efeitos dos quais não consegue imaginar as consequências – seja a destruição por armas nucleares, ou a desumanização causada pela automação, como é debatido na atualidade acerca da inteligência artificial.
Para Berardi, Anders oferece uma alternativa à anestesia emocional da era digital: transformar a culpa em ação, mesmo diante do impossível. Obriga-nos a encarar o horror do presente sem fugir para o conforto da ignorância, da impotência ou da indiferença. Nesse sentido, o arrependimento, como em Eatherly, não gera paralisia, mas impulso ético, forma de ação, assumir o impossível – agir mesmo quando parece tarde ou inútil, porque é a única forma de manter a esperança.
É curioso comparar Eatherly com Adolf Eichmann – o burocrata nazi que organizou a logística do Holocausto e que no seu julgamento alegou friamente que apenas “cumpria ordens”, vindo dai as teses de Hannah Arendt sobre a “banalidade do mal”.
Nesse sentido, Eichmann, é o símbolo da alienação moral moderna, executante de ações monstruosas sem refletir sobre os seus gestos burocráticos e as consequências humanas dos mesmos, nunca assumindo quaisquer responsabilidades. Já Eatherly reconhece o impacto das suas ações e sofre com isso, mesmo quando o resto da sociedade o trata como herói.
Recentemente foi traduzido para português, “Nós, Filhos de Eichmann” (Antígona), de Anders, que não li, mas que suponho ser uma boa obra para ler em simultâneo com a correspondência a Eatherly. A partir de um certo nível de complexidade ou sofisticação, emaranhados na grande máquina do capitalismo e da tecnologia, onde todos estamos enredados, somos todos Eischmann, cúmplices pelo andar da máquina destruidora, alegando inocência por ignorância ou pelo deixar andar.
“Não posso aceitar que o que fiz foi certo só porque me mandaram fazer. Isso não me consola. Não me absolve”, escreveu por sua vez Eatherly. O preço foi o isolamento e a incompreensão de uma sociedade anestesiada, que paradoxalmente lhe dava drogas para o recuperar. Ninguém o entendeu. A não ser Anders, que viu nele lucidez e uma consciência ética raras, devolvendo-lhe confiança e vontade de viver.
O desafio talvez seja sermos mais Eatherly. Recuperar a humanidade perdida.
 
                        