Fixar o Invisível: o documentário “Paraíso”

Ainda não tinha conseguido ver o documentário “Paraíso”, sobre as movimentações à volta da música de dança em Portugal nos anos 90, e que está agora nas salas de cinema, depois da estreia no IndieLisboa e de várias projeções especiais avulsas. Ia com algum receio, confesso.

Por um lado, porque vivi de perto todas aquelas agitações, fui ator-participante, como jornalista, DJ e consumidor. Por outro, porque em Portugal existe dificuldade em fixar momentos da história informal, não consagrada, ou não enquadrada nos preceitos canónicos. 

Afinal, os meus receios, eram infundados. É uma boa representação daqueles anos, quando se pensa especificamente nos circuitos da música house e tecno, que eram dominantes. Em termos formais a ideia de juntar dois entrevistados, que dialogam entre si, revela-se uma solução funcional, instituindo um clima informal e distendido, o que acaba por jogar bem com as imagens da época, acima de tudo, fotos, e algumas captações vídeo, de festas ou espaços.

Mas, mais importante, o que é dado a ver, contem um fio expositivo bem urdido. Mérito do realizador Daniel Mota e dos produtores João Ervedosa (Shcuro) e Maria Guedes (Maria Amor). Como sempre neste tipo de documentos que nos tentam dar a ver uma história que em parte estava esquecida, ou invisibilizada, existem vazios, outros agentes que poderiam estar, atividades que poderiam ter sido nomeadas, caminhos que poderiam ter sido seguidos.

Mas a verdade é que aquilo que está lá faz sentido, preside a uma lógica, é eficaz. Os bailarinos do Alcântara-Mar, por exemplo, têm uma presença excessiva – se pensarmos na sua real influência – mas são pertinentes no contexto do filme, sendo aqueles que acabam por falar mais do corpo, da performance, do espaço de proteção que pode ser a pista de dança.

O centro do documentário acaba por ser a formação de um circuito itinerante de festas de música de dança em Portugal, na primeira metade dos anos 90, inspiradas nas clandestinas raves inglesas, mas de teor legal, formalizado e comercial. Em 1991, num antigo armazém em Xabregas, em Lisboa, desenham-se as primeiras festas semilegais com semelhanças às raves, embora antes já tivesse acontecido algumas mais informais ou a auto-intitulada “primeira festa house em Portugal”, no pavilhão Carlos Lopes, com Adamski, Oakenfold e DJ Vibe.

Mais consensual é o circuito que se foi desenhando a partir daí (com as primeiras grandes festas em Coimbra, Aveiro ou Montemor-o-Velho), em grande medida, devido à visão artística e empresarial de António Cunha da editora e produtora Kaos, segundado por Paulo Nery, ou mais tarde, por Nuno Carvalho da X-Club. Essa é talvez uma das fendas. O tom é quase sempre de celebração, mas naturalmente também houve competição, rivalidades e conflitualidades.

Mas está lá o sonho. Muitos daqueles agentes queriam viver da sua paixão e se alguns ficaram pelo caminho, muitos deles continuam no ativo. Um dos momentos mais conseguidos do filme é quando é nomeado o fenómeno “So get up” dos USL. O que também dá que pensar.

É que se ao longo daqueles anos se criou um circuito – DJs, clubes, festas, lojas, agentes, publicações, capacidade de atração internacional – fica a ideia de que, globalmente, a música aqui feita, salvo raras exceções, não foi longe. Abriram-se possibilidades, mas nem todas foram cumpridas, em parte também pela voracidade e autofagia daqueles tempos.

Talvez matéria para outras abordagens. Porque, outra coisa muito portuguesa, é fazer-se algo sobre determinado tema e achar-se que já está feito, quando as possibilidades e olhares são quase inesgotáveis. Abriu-se, e bem, o paraíso, não se encerrou. Aqueles anos foram apenas o início. A festa continua. Com elementos de ruptura, mas também de continuidade.

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