Arte Explosiva de Cai Guo-Qiang
Um dia normal, 2º feira, meio da manhã, mas à entrada do Museu Guggenheim de Nova Iorque, uma fila enorme de pessoas espera pacientemente a sua vez para entrar. O motivo do alarido chama-se “I Want To Believe”, grande retrospectiva dedicada ao artista chinês Cai Guo-Qiang, em exposição até ao final do presente mês.
Quando, finalmente, se consegue entrar, sucedem-se as manifestações de espanto. Mesmo para quem vive imerso nas múltiplas possibilidades expressivas da arte contemporânea, aquilo que se lhes depara é da ordem do aparatoso. No átrio estão dois carros e, suspensos, a partir do tecto, estão mais sete chevrolets brancos, soltando do seu interior um aglomerado de feixes de luzes brilhantes como se estivessem a explodir, representando os vários estágios de um carro-bomba, naquela que pretende ser, segundo o artista, uma meditação sobre o terrorismo.
Quase todos os dias vemos carros-bomba na imprensa, mas ali uma actuação de terror transforma-se num acto de contemplação e beleza. É uma instalação majestosa, central na retrospectiva, visível a partir de todos os recantos, do átrio à espiral de galerias dos vários níveis do edifício, resumindo o desígnio do artista, combinação de espectacularidade visual e temas sérios. Os que aderem à sua obra reconhecem-lhe a capacidade do espanto. É um mestre do artifício, da encenação, do monumental. Os detractores alegam que a sua obra se esgota nesse efeito de espectáculo.
Cai Guo-Qiang faz peças colossais, com grandes mensagens, algumas delas facilmente descodificáveis. Entre as instalações de grande escala ou as performances pirotécnicas, pelas quais é também reconhecido, abundam alusões à história e política da China, mas também à globalização. É uma superestrela do circuito da arte contemporânea, desde que, em 1999, na Bienal de Veneza, apresentou uma instalação que resultava da recriação precisa, feita por artesãos chineses, de esculturas do Realismo Socialista, reflectindo as duras condições de vida dos camponeses. Na China, a apropriação causou escândalo. No Ocidente, aclamação. A peça “Rent Collection Courtyart” foi restaurada para estar presente na retrospectiva do Guggenheim.
A relação de Cai com as autoridades chinesas é ambígua. Tem momentos em que parece ser crítico. Noutros, é conivente, ou pelo menos não se importa de servir de emblema de afirmação da ideia de uma “nova China”. Apesar de viver em Nova Iorque há mais de uma década, faz-se acompanhar sempre de um intérprete.
Não domina o inglês e a sua obra pretende ter uma ligação forte com memórias ancestrais chinesas. Nos últimos anos muitos artistas chineses ganharam visibilidade no circuito transnacional das artes, mas nenhum como ele. 2008 é já o seu ano.
Não é só a retrospectiva nova-iorquina. É também o facto de ter sido convidado para ser responsável pelo aparato visual e efeitos especiais nas cerimónias de abertura e de encerramento dos Jogos Olímpicos que se realizam este Verão na capital chinesa, Pequim. Para a mesma já prometeu uma “visão artística”. Quem conhece a sua capacidade para orquestrar enormes eventos sequenciais com explosivos, em terra, ou à beira da água, sabe que não será difícil.
Tem 50 anos, depois de ter estudado em Xangai emigrou para o Japão e posteriormente para Nova Iorque, onde vive desde 1995. É conhecido pelas instalações de grande escala e pelos grandiosos projectos de explosões que tem mostrado um pouco por todo o mundo. Para um artista contemporâneo qualquer material serve para atribuir sentido à sua obra. Mas ele fez uma escolha radical: pólvora. Através do pó negro, recorrendo a ensinamentos herdados da tradição pirotécnica chinesa, compõe obras que são visíveis numa detonação de luz, fumo e cor. Arte explosiva, justamente, embora entenda a pólvora como outros a tinta.
Deambulando pelos vários níveis do edifício, uma multidão de pessoas, muitas delas com guias áudio na mão e auscultadores nos ouvidos, tenta decifrar o que se lhes depara. Para ajudar à compreensão, vários vídeos dispostos ao longo da mostra, documentam o seu processo de trabalho. Há quem se sente, pacientemente, absorvendo tudo. As suas instalações explosivas começam, quase sempre, do mesmo modo, combinação de performance e trabalho técnico detalhadamente estudado.
Perante uma assistência numerosa, o artista espalha pólvora, em cima de tela ou de tecido, formando desenhos mais ou menos figurativos. Depois o material explosivo é coberto com cartões sobre os quais são colocadas pedras. Esta protecção destina-se a conter a explosão e a circunscreve-la ao limite das formas pretendidas. Segue-se a inflamação. O espaço é inundado por uma nuvem de fumo entrecortada por fogachos crepitantes.
Por fim, Cai e um numeroso grupo de assistentes, retiram a protecção e revelam o resultado. O que resta das explosões são as telas de grandes dimensões manchadas pela pólvora, depois fixadas, nas exposições. No Guggenheim estão mais de três dezenas. Uma delas, “APEC Ode to Joy”, foi vendida por 9, 5 milhões de dólares no leilão da Christie’s de Novembro, em Hong Kong. Um recorde para um artista contemporâneo chinês.
Nos documentários, apercebemo-nos que são acontecimentos rápidos e precários, onde Cai parece Jackson Pollock, disseminando tinta pela tela, andando de um lado para o outro, misto de expressionismo abstracto e caligrafia chinesa clássica. O seu trabalho é directo e visceral, com alguns requintes de drama, algures entre a criação e a destruição, mas mais preocupado com a espectacularidade do que quaisquer símbolos ou sugestões.
Toda a sua obra parece atravessar essa linha onde terror e beleza se tocam, enlaçam, confundem. Numa outra imponente instalação, nove majestosos tigres suspensos são trespassados por dezenas de setas, naquela que parece ser uma reflexão sobre o culto da crueldade. Outra instalação envolve 99 lobos, fabricados minuciosamente com materiais artificiais, cruzando o ar em arco, até que os líderes da alcateia embatem numa barreira de vidro.
Para ele os lobos são ferozes e corajosos, têm qualquer coisa de heróico, mas a unidade grupal acaba por conduzi-los à destruição em massa. “Tentei encontrar um animal que representasse o heroísmo colectivo, um animal que gostasse de companhia, que vivesse em grupo”, afirma. “Quis representar a tragédia humana universal que resulta desta vontade cega de ir em frente, o modo como tentamos atingir os nossos objectivos sem qualquer tipo de compromisso. Isto é algo que se repete ao longo da história.”
Numa das galerias dos andares de cima, é recriado um rio, suficientemente amplo para receber um barco de pesca, que os mais novos manobram, fazendo fila para entrar na embarcação. Ali, de repente, o universo desmedido de Cai parece serenar. Antes da inauguração disse que gostava que o museu transmitisse a sensação de algo completamente saturado, pronto a explodir.
Missão cumprida. À saída, há quem lance um último olhar para a espiral do edifício. Uns com os olhos brilhantes, outros parecendo tolhidos por contradições, divididos pela repugnância do horror, atraídos pela beleza abstracta de algumas das imagens violentas.
Texto publicado no Público (Ipsílon) em 2008.
 
                         
             
            