O Ódio aos Pobres

Está em vigor uma guerra aos pobres, aos mais fragilizados e indefesos, pelo mundo. Sem forem populações racializadas, a justificação para a matança é ainda mais bem aceite por quem assiste da bancada digital. Ontem foi no Rio.

Que o crime organizado é um problema, há décadas, toda a gente sabe. A questão é como combatê-lo ou circunscrevê-lo. As autoridades do Rio, na pessoa do governador Cláudio Castro, do partido de Bolsonaro, que partiu para uma megaoperação, sem ter pedido apoio ao governo de Lula da Silva, parece achar que a solução é matar sem nexo, indiscriminadamente.

O resultado está aí: mais de 120 mortes, entre elas várias pessoas em idade juvenil, e quatro policias, naquela que foi a ação do género mais letal no Brasil. O governador diz que a operação foi um “sucesso”. Não custa perceber, olhando para situações análogas do passado, o que vai acontecer.

Desde quando é que isso resultou? Nunca. Durante umas horas gera-se o espetáculo da morte em direto e nos próximos dias haverá muita gente sentindo-se satisfeita pela operação. E o crime organizado não só não acabará, como regressará ainda mais violento e sofisticado, enquanto as populações enlutadas dos morros, e seus familiares, criarão ainda mais rancor perante um Estado que conhecem apenas pela lei da bala, e que desistiu delas, incapaz da prevenção, de políticas sociais, de investimento em educação, saúde, cultura e infraestruturas comunitárias, fortalecimento de instituições locais, acesso a direitos básicos e reconstrução do tecido social.

O crime de muitos dos que foram mortos, feridos ou que passaram por horas angustiantes? Serem pobres. Enquanto isso, nos bairros luxuosos do Rio, onde habitam os beneficiados de tudo isto, haverá sorrisos. O espetáculo da morte só os beneficia. Distrai ainda mais. Se as autoridades quiserem acabar com o crime organizado, têm remédio: seguir o rasto do dinheiro. Se promoverem sangue, como é o caso, matam alguns bandidos, e acima de tudo muitos inocentes, de quem quase ninguém quer saber. Está nos livros.

Só que seguir o rasto do dinheiro é complexo. Não em termos logísticos. Não é preciso exército. Basta computador, conhecimento e querer. A dificuldade está naquilo que se pode descobrir, redes de influência e poder, topo da pirâmide, mundo da finança, da política e por aí fora. E isso, claro, é complicado. Difícil de gerir. Dizimar pessoas “invisíveis” tem mais audiência.

É uma comparação fácil, que me perdoem, mas está à mão. Noutra escala, mas com a mesma lógica, Gaza não é semelhante? Um dos exércitos mais poderosos do mundo, o de Israel, conhecido por ataques minuciosos e cirúrgicos, com a benevolência dos líderes do mundo, usando o argumento de que quer acabar com o Hamas, promove um genocídio, ceifando até agora a vida a mais de 70 mil pessoas, e difunde a destruição total de um território.

O Hamas não acabou, mas eliminaram-se vidas fragilizadas, muitas delas crianças, e agora anda-se a tentar distribuir as mais-valias do território pelos mais poderosos. O que é que existe de novo em tudo isto? Novas relações de força e exploração, legitimadas pelo poder político. Estamos numa espécie de última fase do neoliberalismo, capitalismo, chamem-lhe o que quiserem, em que as formalidades, mais ou menos institucionais, que dominavam as relações políticas têm vindo a ser abandonadas. A época dos consensos e da consolidação democrática, está a ir rapidamente à vida. Não há regras. Só existe o poder da brutalidade, do mais forte, do mais endinheirado, do mais desbocado, do mais cruel. É isso que vemos emergir em todo o mundo hoje.

Eu sei, Portugal, em comparação, parece quase nada. Mas os semáforos vermelhos estão mais do que acesos. Só não vê quem não quer. A legitimação política para o pior está mais do que há vista – em Loures, há semanas, ou o encostar à parede e a hostilização a cidadãos do Bangladesh.

Perante este cenário em que se descarta os enfraquecidos que estão a mais, as classes médias depauperadas poderiam ser o toque a reunir, procurando alternativas, mas existe divisão, cinismo, medo ou impotência. A maioria opta por preservar o que tem, imaginando que não será afetada, ou acreditando que a sua precariedade se deve aos imigrantes. Culpar os frágeis pelos atos dos poderosos é a forma eficaz de enganar as populações. Em todo o lado.

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