Sam The Kid: no meu tempo havia uma coisa bonita que era a sedução

Os pais estão na capa mas ainda não sabem que a sua história de amor deu origem ao álbum do filho. Mas podem ficar descansados. Dificilmente, Sam The Kid, poderia compor fantasias sonoras mais calorosas em torno da sua relação como em "Beats Vol.1 - Amor".

 

As palavras saem aos ziguezagues, enroladas, para cá e para lá. Percebe-se que, para ele, deve ser mais fácil criar música. O olhar é esquivo, descentrado, mas existe uma vontade enorme de comunicar. Fala com uma intimidade desconcertante das máquinas com que cria a música, das MPC 200, dos Mini-Discs, das câmaras de vídeo, dos arquivos de sons e dos amigos que diz filmar obsessivamente. Fala das fantasias instrumentais que criou de forma artesanal a partir de casa como se fossem a sua rotina.

 

No final da conversa deixa escapar. "Não entendo alguns textos que escrevem sobre mim. Às vezes exageram. Tratam-me como se já estivesse morto", ri-se. "Não creio que este álbum seja especial, são apenas batidas [temas instrumentais]. É aquilo que faço todos os dias... Não me deu trabalho nenhum. Bastou escolher 17 das centenas que tenho gravados. O próximo álbum, sim, vai ser mais cuidadoso. Trabalho, para mim, é escrever. Isso sim, é difícil. Sou exigente, já não me interessa a rima, a última sílaba. Quero a poesia.  Este é apenas um disco de batidas, nada mais". Este é "Beats Vol. 1 - O Amor" de Sam The Kid, provavelmente o álbum mais radioso este ano lançado em Portugal.

 

Para a maioria, Sam The Kid, pode ser um ilustre desconhecido. No entanto, no seu currículo, já constam dois álbuns. Discos de baixo custo, feitos a partir de materiais rudimentares (o sampler mais barato do mercado, um microfone e um gravador de CDs) e de distribuição limitada, mas ainda assim discos.

No final de 1999, quando nos cruzámos com ele pela primeira vez, tinha acabado de lançar "Entre(tanto)", naquele que constituiu o primeiro álbum de hip-hop português em edição de autor. "Gosto de experimentar coisas diferentes", dizia ele.

 

"No hip-hop toda a gente sampla soul e funk dos anos 70. Estou saturado e comecei a utilizar outras fontes como a música portuguesa". E, na verdade, lá estavam referências inesperadas como Mário Viegas a recitar Almada Negreiros ou Dulce Pontes a cantar Amália Rodrigues". Na capa do disco, outra surpresa, tendo em atenção o imaginário extremamente codificado do hip-hop. Uma fotografia da família, onde figurava o próprio Sam.

 

Seguiu-se, já este ano, "Sobre(tudo)", e um ligeiro fenómeno de culto que lhe permitiu vender 3000 mil exemplares e actuar em festivais de Verão como Paredes de Coura. Chega agora "Beats Vol. 1 - Amor" num lançamento da Loop Recordings que correspondeu a um repto do mentor da editora, Rui Miguel Abreu. "Já me tinha desafiado a criar um álbum de instrumentais em 99. Nessa altura ainda trabalhava com uma Boss [sampler]. Cheguei a mandar-lhe três CDs com batidas da Boss. Depois, ele emprestou-me a primeira MPC. Ao princípio achava a máquina complexa, mas depois apaixonei-me. Fechei-me no quarto durante uns tempos, fiz mais algumas batidas e criei o álbum".

 

Uma das mais-valias do disco é o fio narrativo que se desprende dos interlúdios, dos pormenores dos 'samples', naquilo que é sugerido e apenas podemos imaginar. "Tentei que existisse uma lógica, mesmo se ela funciona apenas para mim. O álbum é a forma como olho para a história de amor dos meus pais. Consigo ver isso, espero que as pessoas também, mas cada um pode construir a sua história. É como um quadro feito por um pintor, cada um vê uma coisa  diferente... O segredo são os interlúdios que estabelecem a ligação dentro da minha cabeça".

 

Na cabeça de Sam é a história de amor dos pais, feita de encontros, desencantos, separações e reencontros.  A maior parte desses acontecimentos são-nos dados através de 'samplers' vocais, alguns deles de música ligeira portuguesa.

 

"As fontes são dos anos 60 e 70. Gosto muito, por exemplo, dos trabalhos do Duarte Mendes, na forma de cantar faz-me lembrar o Carlos Mendes... O hip-hop é isso, é descobrirmos coisas que não conhecíamos... A maior parte foram editadas antes de ter nascido... Alguns desses discos são dos meus pais, outros comprei-os, outros retiro-os da Televisão ou da Internet".

 

Ouvir falar Sam dos seus devaneios instrumentais é surpreendente. Sabe a proveniência dos sons e a todos consegue atribuir um sentido preciso. Como se fossem canções clássicas feitas a partir de narrativas sónicas. "A relação com as músicas passa muito pela ligação afectiva com os samplers" argumenta. "Sei qual é a base principal de determinado tema, apesar de lhe acrescentar outros elementos". De repente, sem que lhe tivéssemos pedido, começa a descrever todas as faixas, como se fosse um escritor de canções. E não é?

 

- "'Beleza' é baseado num disco dos Commodores e é o meu pai a olhar para a minha mãe. É amor à primeira vista".

 

- "'O que eu quero' é o assumir que aquela mulher é a tal, é o seu destino. Nessa faixa, existe uma voz minha a cantar para uma câmara de vídeo. Gosto de vozes nas batidas. Vozes de amigos, telefonemas que gravei, vozes de cassetes eróticas, coisas de telenovelas, risos da minha namorada. No fundo, samplo tudo o que me rodeia, a minha vida".

 

- "'Sedução' é Vítor Espadinha e é o meu pai a bater o coro ao telefone. Nesse tema, samplei uma conversa de um amigo com uma rapariga sem eles saberem".

 

- "'Vem' é Marvin Gaye, é quando acontece o primeiro beijo".

 

- 'Eternamente hoje' contém a Minnie Riperton. É quando se trocam palavras de amor mútuo. É o amor em estado de graça, tudo é perfeito".

 

- 'Alma gémea' é Maria Bethânia. É o momento do casamento".

 

- "'A fundação' é David Axelrod e o casamento da minha irmã mais velha. Depois, começam os problemas, a relação cansativa com o dia-a-dia".

 

- "'Fogo sem chama' é Curtis Mayfield".

 

- "Em 'Lances', ele conhece outra mulher e vai para a cama com ela".

 

- "'A manhã seguinte' é Duarte Mendes... É o momento em que ele acorda e se sente culpado".

 

- "Conta à mulher, existe discussão e vai-se embora em 'Até um dia'". 

 

- "Mais tarde, pára para pensar e existe 'Arrependimento'. Volta a relacionar-se com os seus amigos, conta-lhes os grande momentos que passou com a mulher. Um amigo diz-lhe: esquece isso, mas ele não consegue esquecer, não pode esquecer".

 

- "Começam as saudades, reencontram-se, fazem amor, mas não ficam juntos".

 

- "O 'Quando a saudade aperta' é baseado num poema de um alentejano amigo de meu pai. Aliás, ele vai entrar no vídeo que estamos a preparar".

 

- "'Eu e tu' é Groover Washington Jr, enquanto o 'Recaída' é retirado de uma fala do Sean Penn".

 

A outra grande paixão de Sam é o cinema. Anda de câmara na mão, pronto para filmar aquilo que o rodeia. "Faço vídeoclips... Já fiz uma média-metragem de 20 minutos... Tenho uma cassete que se chama vídeo-Chelas. É como se fosse um canal de televisão onde vou registando tudo. Coisas reais, como as sessões de gravação com os meus amigos, mas também ficções. Tenho várias coisas filmadas a partir de um personagem, o Peiadura, que é um traficante e um outro, o Megaferras, que lê o pensamento".

 

Mas a imaginação delirante de Sam e amigos não se fica por aqui. "Num outro filme, o personagem principal é o Byters que sou eu... Vão a minha casa para me copiar. Depois, assaltam-me e roubam-me as letras e os discos. Passados 5 meses estão num programa de hip-hop português com as minhas músicas, tornam-se famosos e ninguém acredita que aquilo é material meu".

 

É ficção, mas podia ser realidade. Porque Sam é o pólo aglutinador da cena hip-hop de Lisboa. A maior parte dos discos que têm sido editados contam com a sua participação na feitura das bases sonoras. "Gosto de colaborar com os meus amigos, tal como eles participam nestes projectos. São coisas imperfeitas, mas trata-se de aprender, evoluir. E, depois, é uma fonte de informação tremenda. A música, os vídeos. São expressões de acontecimentos, daquilo que sou, somos. Curto bué isso".

 

Era perceptível que, nos últimos anos, existia algo a acontecer no universo do hip-hop em Portugal. Lojas, agentes, DJs, produtores, projectos, circuitos e um público interessado emergia. Este ano, aconteceram as edições de discos. O discurso ainda é muito virado para dentro, a qualidade não é a ideal, mas de repente uma nova geração de activistas vem dizer à música portuguesa algo tão simples como isto: faz-se fazendo.

 

"Isto está impecável", diz Sam. "Existe gente a queixar-se, mas basta olhar para trás para perceber que algo mudou. Este ano, todos os meses saíram álbuns. É um fenómeno único em Portugal, apesar de, em parte, isso se dever aos baixos custos de produção, mas não interessa. Estão a acontecer coisas. Sabemos que vamos chegar a outro patamar. É isso que vai dividir as águas e mostrar quem merece continuar e quem vai ficar pelo caminho".

 

Os pais de Sam ainda não sabem que são os protagonistas do novo álbum do filho, nem sequer que figuram na capa do mesmo. "Quando lhes disser vão ficar satisfeitos" diz, "mas provavelmente não vão ligar muito. Agora, toda a família ouve os meus álbuns... Não gosto disso... Tenho que pensar em mim, não me posso preocupar se os meus tios e primos vão ouvir aquilo que faço", diz enquanto se ri.

 

Samuel Mira, mais conhecido por Sam The Kid, tem 22 anos e vive com a mãe, em Chelas, Lisboa.

 

 

 

Todos os discos de amor são ridículos

 

Sam The Kid

Beats Vol.1 - Amor

Loop Recordings, distri. Ananana

4

Todas as cartas de amor são ridículas diz o poeta. Só se não forem realmente de amor. Porque quando são realmente de amor, podem ser ingénuas, mas nunca ridículas. O álbum de Sam The Kid faz pensar nessa coisa chamada pop portuguesa e nos seus agentes. Sempre às voltas, às voltas, às voltas com a internacionalização que não vem, com o mercado que não se é capaz de criar, com a produção sofisticada, com as editoras que não acreditam, com o estabelecimento de infraestruturas ideais, à procura de circuitos que não se desenvolvem.

 

Atrás de uma perfeição que não existe, que nunca existirá e a esquecer-se disto. Da música, da espontaneidade do gesto, da vontade de partilhar experiências. "Beats Vol.1 - Amor" é uma obra prima? Não, longe disso. Os meios são rudimentares, o som está longe de ser o melhor, o disco é longo de mais. Mas existe mais espontaneidade e emoção em cada miligrama das batidas deste disco do que na esmagadora maioria da música feita em Portugal este ano. Aqui não existe entendimento de conceitos, vontade inóspita de alcançar a perfeição. Apenas música naquilo que ela tem de mais generoso e imperfeito. 

 

Uma batida tranquila e redonda inspirada no hip-hop começa e um motivo sonoro em forma de 'sampler' segue-lhe os movimentos de forma sensual, envolvendo-a. À sua volta circulam arranjos que atribuem consistência a todo o edifício. É só isto a música de Sam The Kid. Linear, simples, precisa. Faça você mesmo em casa porque não é complicado. Mentimos, claro.

 

É necessário saber povoar um imaginário, criar canções sem palavras e, por exemplo, ter uma história de amor para contar. É que não é só a evocação da mocidade dos pais que Sam nos traz é também a memória de um tempo, de um Portugal romântico que se escondeu. Dado nos títulos, nos 'samples' de voz, nos ambientes. Como se Sam partilhasse connosco a sua memória, o álbum de fotografias de família, os amigos que namoram com as amigas, as telenovelas que vê, o funk, o jazz, a música ligeira que ouve lá em casa. No final, até pode ser tudo imaginação de quem ouve, mas para se chegar aí, a esse estado onde sonho e realidade se tocam, é necessário que sejamos induzidos.

 

São narrativas sonoras que podiam ser canções, que se desenvolvem por entre construções circulares, repetitivas, dobradas sobre si próprias. É, paradoxalmente, um disco de temas instrumentais que parece querer recuperar o sentido dessas palavras que, de tão gastas, já ninguém ousa dizer. Talvez seja a hora da música pop portuguesa voltar a dizer, bonita, linda, airoso, gentil, amor. Sam The Kid fê-lo. Sem palavras. V.B.

Textos publicados no Público (Ipsílon) em 2002

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