A zanga dos que não foram convidados para a mesa
Foto: VB
Leio vários comentários analisando que, num debate, Pedro Nuno Santos terá "humilhado" André Ventura, expondo a sua impreparação em temas económicos, o que fará com que automaticamente os seus apoiantes "ganhem juízo" e mudem de sentido de voto.
Era bom não era, se fosse assim tão simples? O eleitorado do Chega não é uma entidade monolítica, é uma realidade flutuante, feita de muitas circunstâncias, mas uma coisa parece certa: é acima de tudo um eleitorado zangado e impotente – e sabem que mais? Têm muitos deles razões para o estar. Foi-lhes dito que se se esforçassem, a meritocracia acabaria por lhes outorgar uma vida digna, mas não só isso não acontece, como o fruto da sua energia vai parar aos bolsos dos que preservam um sistema que apenas funciona para alguns.
Como é evidente a questão é sobretudo económica. Não tiveram acesso, nem foram convidados, para aceder à mesa faustosa dos que beneficiaram nas últimas décadas do atual sistema. Mas não é apenas isso. A zanga é também de ordem existencial. Quem se sente defraudado, passa o tempo a ser apelidado de “ignorante” ou “falhado”. Não surpreende que sejam os detentores do conhecimento – universidades, comunicação ou cultura – os principais visados nos ataques de quem está à frente de governos pós-democráticos.
Por um lado, esses são campos que estão fragilizados por décadas de neoliberalismo, sendo facilmente permeáveis, e por outro quem detém o poder sabe que o processo de reconhecimento com os seus apoiantes zangados não funciona pela exposição de competências. São as fragilidades partilhadas e reconhecidas que criam identificação. A ausência de saber sobre as mais diversas matérias é normalizada ou desculpada. Não é só porque os apoiantes de Trump ou do Chega também podem não deter esse saber, é porque não suportam quem o tenha, porque isso lhes devolve as suas lacunas.
A linguagem vulgar ou mesmo obscena é outra forma de afirmação – “quem são estes para me dizerem como devo falar?”, parecem afirmar Trump, Putin, Bolsonaro ou os deputados do Chega. Também não é por acaso que o perfil dos “senhores do mundo” se foi transformando.
Os “velhos” e “novos” ricos são semelhantes na valorização do capital, como a medida de todas as coisas, e na forma como utilizam o sistema a seu favor, mas também não se sentam à mesma mesa. O ressentimento também por aqui anda. As maneiras excessivas de Trump ou de tecno-oligarcas como Musk são vulgares aos olhos das velhas elites. Agora estão também a vingar-se, dizendo: “Vêm? Não precisamos do saber, da ciência, das vossas maneiras, do respeito pelos outros. Temos o que apenas interessa: poder e dinheiro.
Dir-se-ia que, na base da pirâmide social, temos os defraudados do sistema, e no topo os que o abraçaram por excesso, sendo que os segundos instrumentalizam a frustração dos primeiros. Haveria por aqui outros elementos a considerar? Sim. Mas na substância é isso.
E o que é mais: nada disto é novo. Historicamente o que aconteceu por vezes é que o eleitorado mais debilitado foi resgatado – na sua humilhação e aspirações – pela esquerda progressista. Agora não tem sucedido. A extrema-direita, nesta fase, e a direita conservadora cada vez mais à direita, tornou-se na voz dos desapossados, que são cada vez mais porque o sistema está também ele cada vez mais em putrefação, mas continua a funcionar, porque tem de funcionar, mesmo se já ninguém acredita que seja possível prosseguir assim.
Neste quadro tende-se a ouvir quem tem soluções mais simplistas para oferecer, seja para explicar os seus problemas (imigração, criminalidade, corrupção) ou para propor soluções com horizonte, que a extrema-direita, como é evidente, não tem, porque só lhe interessa regressar a um passado mitificado. Uma coisa é certa: desenhar um outro futuro, só será possível com muitos daqueles com quem não nos sentamos à mesa. Não vai ser fácil. Até porque os insatisfeitos tendem a aumentar, enquanto o sistema se vai debilitando. Gostava de acabar este pequeno texto com uma daquelas frases arredondadas que sintetizando tudo, instituem em simultâneo uma sensação de alguma esperança. Não tenho.