Rislene: de onde vem esta voz?

É vulgar ouvir dizer que a música feita por estas bandas, nos últimos anos, exibe qualidade e diversidade. Eu próprio o tenho feito, com algumas nuances. Porque se a democratização e o acesso a meios de produção têm permitido a difusão de mais imaginários, outras formas de existir, também não é menos certo que o jorrar de música tem também transmitido indiferenciação. Por outras palavras: a banha da cobra também se expandiu. A afirmação da singularidade é hoje bem mais subtil por um conjunto de razões que agora não interessam.

E depois existem casos como o de Rislene, jovem cabo-verdiana, a residir em Paris, a gravar e acolhida em Lisboa, sempre em trânsito, entre territórios, identidades e línguas, expressando-se em crioulo e ocasionalmente francês, que parecem contrariar todas as probabilidades. Ouve-se a sua voz alguns segundos e percebe-se de imediato estarmos em presença de algo especial. Não é apenas a voz. Nunca é. A não ser que estejamos a falar de um concurso de talentos. Mas não é disso de aqui que se fala. É de como aquela voz jovem transporta qualquer coisa de profundamente ancestral, encapsulando num gesto simples como expressar-se vocalmente, tantas, mas tantas, existências, memórias, quotidianos difíceis do presente, aspirações de outros futuros. A intencionalidade da sua voz humedece.

Até estas palavras parecem desadequadas, perante a integridade do que expõe, encapsulando tanto verdade como poesia. E os músicos-produtores (Charlie, Migz, Ariel) que, até agora, têm trabalhado com ela, percebem-no, rodeando a sua voz de gestos rítmicos ou melódicos minimalistas, precisos, descarnados. Porque é sua voz, a forma como se expressa em crioulo, e o que diz, que é o centro nervoso de tudo. Conhecem-se apenas meia dúzia de canções de Rislene Semedo (“Tudo podi bira nada”, “Triste vida”, “Consedju di mana”, “Nha dignidade” ou uma colaboração com Richie Campbell), mas todas elas emanam dessa mesma força, onde com pouco, se exprime todo um cosmos de emoções.

Há dois dias lançou o single de avanço do álbum que está a ultimar. Chama-se “Disisti”, balanço insinuante e em câmara lenta inspirado no hip-hop, como os outros temas que se conhecem dela, e aquela voz expondo gravidade, uma beleza melancólica e, ao mesmo tempo, urgência. O videoclipe, também excelente, é da autoria de Diogo Carvalho (Gazella), do coletivo Unidigrazz. Existe mesmo algo de muito especial a ser fermentado aqui.

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