A Transmissão do Saber Tecno no Neopop
Jeff Mills no Neopop
Esta imagem. Meio dos anos 90, Albufeira, Algarve, Verão, calor, hora de almoço. À porta de um restaurante um pequeno grupo, vestido de forma relaxada, calções, t-shirts, sandálias, espera pelo americano Jeff Mills, já então uma das figuras mais proeminentes do circuito tecno globalizado. Nessa noite atuará na Locomia, na companhia de Richie Hawtin, e de portugueses como Maurel, Jiggy ou Morrice.
Ei-lo que chega. Compenetrado, porte distinto, calça vincada, sapatos impecáveis, polido no trato. O contraste, com os restantes, entre eles eu, e com o frenesim performativo como costuma estar na mesa de mistura, não poderia ser maior.
Fala pouco. Mas quando o faz todos escutam. Como a música, minimal e precisa. É de ideias fortes. Ele, de Detroit, berço do tecno, diz que foi depois da música ser adotada na Europa que a conexão entre comportamentos de evasão e drogas se propagou.
Para ele, e outros pioneiros, o tecno era afirmação, pertença, comunidade, resistência, novas experiências, arte. Às vezes, no meio da celebração, essas dimensões eram esquecidas. Vingava o hedonismo sobre a arte. E isso, nessa época, aborrecia-o. Hoje é a distração dos telemóveis. Ainda assim, ontem, como hoje, em tantas noites, leva toda a gente ao delírio.
E mais: conseguiu ao longo dos últimos trinta anos conciliar a faceta de diversão, com a exploratória, abraçando inúmeros projetos e áreas (jazz, clássica, arte contemporânea, moda, design ou arquitetura). Exatamente como tem feito Hawtin, pulando do clube para a galeria de arte sem problema.
Na madrugada de sábado, no Neopop de Viana do Castelo, lá estava ele. Mais uma noite, mais uma volta, com o minimalismo tecno, sempre igual e diferente, e a sua forma particular de estar, com gestos claros e uma sessão em crescendo. O mesmo aconteceu com Hawtin na noite anterior.
Ou com o alemão Sven Väth, que fechou o festival, como de costume, na manhã de domingo, com uma viagem pela história da música de dança. Qualquer um dos três (e também se poderia falar de Rui Vargas, Rob di Stefano, Frank Maurel, Ivan Smagghe e outros) são correias de transmissão de uma cultura ainda tão incompreendida e que já passou por diversos estágios, sendo que neles todos esses cambiantes se confundem. Está no seu corpo e sonoplastia.
Nesta edição do Neopop sentiu-se muito essa correia de transmissão de saber. As novas gerações (Kolo55, Héctor Oaks, I Hate Models, Aurora Halal, Daria Kolosova, Imogen e outros) podem acelerar mais ritmos, endurecer texturas, serem mais rígidos ou ríspidos, ou procurar novas simbioses (com trance, house progressivo ou pop), mas estão sempre em conexão com essa memória primordial, com a boa nova de, principalmente na última década, a cena tecno se ter tornado ainda mais inclusiva, a começar pela presença de mais mulheres na cabine e na pista. Também há vacuidades ou inconsequências, mas não é isso que predomina em Viana.
Essa tensão que o tecno sempre habitou – entre ser resistência ou evasão – está hoje integrada, até onde é possível, graças a personalidades como Jeff Mills, que nunca prescindiu de experimentar e de se contar com integridade.
Para o ano, de 6 a 8 de Agosto, o festival celebra 20 anos.