Casais

Lou Reed e Laurie Anderson

I

Não faço ideia se eram namorados, amigos, amigos coloridos, ou apenas dois estranhos unidos por uma circunstância casual, porque quando os vi a partir do interior do táxi onde estava, parado no semáforo, já ele segurava na mão dela, porque era cega, ajudando-a a atravessar a passadeira. A meio, quando o sinal já transitava para verde, ele escorregou, sendo ela que o amparou, impedindo que caísse. Nisto desataram os dois a rir, talvez porque naquela circunstância se confundiram os papéis sobre quem estava a ajudar quem, e eu e o taxista ficámos a olhar, sem trocarmos palavra. Não faço ideia o que ele julgou, mas eu pensei que é bom ter uma mão à mão. E nisto deram mesmo a mão e lá foram, enquanto o semáforo ficou verde.

Dias depois almoçava perto de uma estação de comboio, sozinho, num restaurante familiar, rústico, com qualquer coisa de um tempo que já foi, ou então que ainda não foi, o que, bem vistas as coisas, vai dar ao mesmo. Como em muitos espaços do género, ao domingo, predominam os casais de velhotes. À minha direita um deles comia cozido à portuguesa. Ele falava sem parar sobre enfermeiros, médicos, hospitais, finanças, futebol ou o passeio que deviam ter dado e não aconteceu. Ela, ao lado dele, limitava-se, de vez em quando, a abanar a cabeça, em aparente sinal de concordância, enquanto ambos olhavam para a TV.

A minha geração tende a julgar pessoas assim, desistiram da vida argumentam, projetando que são capazes de muito melhor, de existências sempre excitantes, luminosas, desafiadoras. Talvez. Eu tiro o chapéu a quem passou por muita coisa a dois, frustrações, equívocos, desilusões, e mesmo assim persiste. Claro que se pode aspirar a melhor. Mas na ânsia da felicidade a qualquer custo também vamos muitas vezes para o extremo oposto e passamos a acreditar em relações fáceis e descartáveis. A solução deve estar, algures, no meio, e não existe receita aplicável a todos, cabendo a cada um procurar a sua.

Há pouco, passei por um casal que discutia e ele dizia-lhe: “Não grites, não é preciso, que estou mesmo aqui ao teu lado.” Afastei-me a sorrir pela menção pouco usual à proximidade, e ainda a ouvi dizer: “Grito porque não me ouves.”

Gritamos quando nos zangamos para tentar colmatar a distância afetiva que nos separa. Já quando as coisas estão bem falamos de forma amena. Nessas ocasiões basta um sussurro. Ou até não dizer nada, um olhar é suficiente. Estive quase para me armar em cupido conciliador e dizer-lhes que quando discutissem não dissessem coisas que os afastassem, pois haverá um dia em que a distância será tanta que não conseguirão ver-se à frente do nariz um do outro, mas pus-me a milhas, não fossem gritar comigo também.

Por falar em ruído, há dias, ela clamava e segurava uma criança, que chorava, enquanto ele, descontrolado, a impedia de entrar no prédio, para onde eu também queria entrar. Não faço ideia o que provocou aquele momento, mas fiquei ali, parado, ao telemóvel, falando com um amigo, sem saber o que fazer. Ela dizia para ele lhe desaparecer da vista, ele parecia chorar, enquanto o meu amigo me perguntava o que raio se passava. Pedi que se acalmassem, evocando a criança, mas não se escutavam a si próprios quanto mais aos outros, estavam ali, primitivos, à espera que um desistisse sei lá do quê. Ela continuava a dizer-lhe para se afastar, com uma voz que não parecia vir de dentro dela, e ele nada.

Às tantas sugeri que iria chamar a polícia e foi aí que ambos se viraram contra mim. E eu percebi que os havia conseguido unir de novo. Não sei se foi a melhor forma de resolver o assunto. Mas foi o que se arranjou. Ele sentou-se no chão a soluçar. Ela, a criança, e eu, lá entramos. Amanhã, se calhar, vou vê-los de mão dada, como acontece tantas vezes. Casais. Ninguém diga que é fácil. Mesmo que que não seja impossível. Como, por exemplo, a relação de Lou Reed e Laurie Anderson revelou.

II

Nos últimos anos, por vezes, quando me sinto desalentado com as relações interpessoais, leio alguns dos pensamentos que ela tem exposto sobre ele e a relação íntima de mais de 20 anos que estabeleceram. Há algo de profundamente desperto, lúcido, delicado e tocante na forma como o faz.

“O Lou e eu tocámos juntos, tornámo-nos os melhores amigos e depois almas gémeas, viajámos, ouvimos e criticámos o trabalho um do outro, estudámos coisas juntos (de caça de borboletas a meditação). Inventámos piadas ridículas, parámos de fumar 20 vezes, discutimos, zangámo-nos às vezes, aprendemos a suspender a respiração debaixo de água, fomos a África, cantámos ópera em elevadores, fizemos amizade com pessoas improváveis, adotámos um doce cão pianista, partilhámos uma casa separada das nossas residências individuais, protegemo-nos e amámo-nos.”

“Como muitos casais, cada um de nós criou formas de ser – estratégias e, por vezes, cedências, que nos permitiam fazer parte de um par. Por vezes, perdíamos mais do que conseguíamos dar, ou cedíamos demasiado, ou sentíamo-nos abandonados. Por vezes, ficávamos verdadeiramente zangados. Mas, mesmo quando eu estava irritada, nunca estava aborrecida. Aprendemos a perdoar-nos. E, de alguma forma, durante 21 anos, entrelaçámos as nossas mentes e corações.”

“Na primavera de 2008, seguia numa estrada na Califórnia, cheia de pena de mim própria e a conversar ao telefone com o Lou. "Há tantas coisas que nunca fiz e que queria ter feito", disse-lhe. “Como o quê?" "Sabes, nunca aprendi alemão, nunca estudei física, nunca me casei." E ele: “Porque é que não nos casamos? Encontro-te a meio caminho. Vou para o Colorado. Que tal amanhã?"

"Hum – não achas que amanhã é demasiado cedo?", respondi. “Não, não acho." Então, no dia seguinte, encontrámo-nos em Boulder, Colorado, e casámo-nos no jardim de um amigo, num sábado, com roupas velhas. E quando tive de fazer um espetáculo logo após a cerimónia, foi perfeitamente aceitável para Lou.

Há muitas maneiras de casar. Algumas pessoas casam com alguém que mal conhecem – e também pode resultar. Mas quando se casa com o nosso melhor amigo de muitos anos, deveria existir outro nome para isso.

Mas o que me surpreendeu no casamento foi a forma como alterou o tempo. E também como acrescentou uma ternura que era completamente nova. Parafraseando o grande Willie Nelson: "Noventa por cento das pessoas no mundo acabam com a pessoa errada. E é isso que faz a jukebox girar." A jukebox de Lou girava por amor e muitas outras coisas – beleza, dor, história, coragem, mistério.

O Lou esteve muito doente nos últimos anos. No final desenvolveu cancro no fígado, agravado por diabetes avançada. Tornámo-nos peritos em hospitais. Ele aprendeu tudo sobre doenças e tratamentos.

Continuou a praticar tai chi todos os dias durante duas horas, além da fotografia, livros, gravações, o seu programa de rádio com Hal Willner e muitos outros projetos. Amava os seus amigos e ligava, enviava mensagens e e-mails quando não podia estar com eles. Tentámos compreender e aplicar os ensinamentos do nosso mestre Mingyur Rinpoche – especialmente os mais difíceis, como "Tens de dominar a habilidade de sentir tristeza sem estar realmente triste."

Quando o médico disse: "É o fim. Não há mais opções", a única parte que o Lou ouviu foi "opções" – não desistiu até à última meia hora de vida, quando aceitou tudo – de uma só vez e completamente.

Estávamos em casa – eu tinha-o retirado do hospital uns dias antes – e, embora extremamente fraco, insistiu em sair para a luz brilhante da manhã. Nunca vi uma expressão tão cheia de admiração como a de Lou enquanto morria. As suas mãos faziam os movimentos da água no tai chi. Os seus olhos estavam bem abertos. Eu segurava nos braços a pessoa que mais amava no mundo e falava com ele enquanto morria. O seu coração parou. Não teve medo. Caminhei com ele até ao fim do mundo.”

“No dia antes de morrer, estávamos a nadar na piscina. A olhar para as árvores. E ele estava simplesmente a flutuar e a dizer: 'Sabes, sou tão suscetível à beleza’ E penso nisso todos os dias. Todos os dias. Como abrir-me ao mundo. E realmente apreciá-lo.”

Laurie Anderson tem 78 anos. Lou Reed morreu a 27 de Outubro de 2013. Tinha 71 anos.

I-Crónica de Julho de 2021, publicada no jornal Público

II-Excertos de um ensaio de Anderson sobre Reed, publicado na Rolling Stone americana em Novembro de 2013

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