‘Adolescência’, ‘On Falling’ e a banalidade do mal
Adolescência
Quis o destino, e eu, que tivesse visto a série de TV “Adolescência”, e o filme “On Falling”, realizado por Laura Carreira, quase de seguida. Sobre os méritos artísticos de ambos já muito foi escrito e corroboro-os. O lado formal, ambientes e personagens da série, e o realismo social, minucioso e entorpecedor do filme, a fazer lembrar Ken Loach, valem a pena. Já as leituras sociais de alguma surpresa, principalmente no caso da série, dão que pensar.
As ondas de choque, como se fosse uma revelação o que se vê na série, são surpreendentes. Nada do que é enunciado é novo. A passagem da infância à existência adulta é tempo de mudanças físicas, construção identitária, lógicas de aceitação grupal (quando não se encontram caminhos de pertença saudáveis, pode acabar-se em grupos de práticas violentas), humilhações entre pares, dificuldades relacionais, ideação suicida (algo que nunca é nomeado), tentativas de emancipação familiar, testar limites, isolamento, horas nos quartos a ouvir música e, antigamente, o espaço da rua, que acabou.
A novidade, a existir, seria, então, essa. A rua, encarada como perigo pelos pais, foi substituída pela internet, redes, grupos fechados e telemóveis. Mas, ou anda meio mundo distraído, ou não sei como é que isso é novidade. Sim, os telemóveis podem viciar. E sim, na rede, podem propagar-se ideias violentas, linguagens, códigos e rituais grupais, e potenciar-se a cultura da comparação, da competição e da mercantilização do eu. Da mesma forma a lógica da humilhação em horda vinga no espaço digital. Evapora-se a complexidade, emerge o preto-e-branco, a identificação grosseira com o bem e o mal, o ânimo justiceiro, o desejo de punir e até mesmo de aniquilar o outro.
Mas será apenas online? E na escola? E será apenas em idade juvenil? É confortável pensar dessa forma, mas claro que não é verdade. Diz-se que os adolescentes têm menos ferramentas de descodificação dos perigos. Talvez. Mas os adolescentes limitam-se a mimetizar adultos. O problema, em termos gerais, continua a ser a desadequação entre a cadência transformadora da tecnologia, e a incapacidade humana em pensar em estratégias politicas, económicas, culturais e morais, para gerir os efeitos, sejam benéficos ou perversos. Até há alguns anos existia uma fé cega na tecnologia. Agora passou-se para o extremo oposto e é a fonte de todas as ameaças.
Mas olhar para a série e diabolizar apenas as redes ou telemóveis, circunscrevendo-os a problemas da adolescência, acaba por ser muito confortável. Imaginamos que é tudo uma questão de proteger, proibir, vigiar e punir. A velha ideia, que ainda vinga, online e offline, de que basta desligar ou pôr um policia a cada esquina a velar. Apazigua-se consciências, ataca-se algumas consequências e efeitos, e nunca se chega às causas ou prevenção.
Em todo o lado assistimos a uma desumanização gritante, competição desenfreada, precaridade, desigualdades, existências atomizadas, dificuldades relacionais, e achamos que isso não tem consequências, em particular junto dos que estão a constituir identidade e noções de pertença? A atmosfera de que se alimenta a série, a nível institucional, familiar e relacional, aponta sempre para valores de individualismo radical, competição e uma visão de sucesso baseada na acumulação e não na cooperação ou no cuidado.
E isso não tem consequências? No final da sessão de “On Falling”, sábado à noite, no Nimas, em Lisboa, numa conversa entre realizadora, atrizes e público, discorreu-se não sobre adolescentes, mas sobre trabalho, existências zombies, espíritos do tempo, entre empregos de merda, o trabalhar e não ter o suficiente para pagar as contas, o desencanto e o olhar perdido num telemóvel. Na altura de se encontrar os responsáveis por vidas tão esvaziadas, falou-se de zanga ou impotência, mas pairou a ideia de um mal disseminado, fazendo parte da lógica intrínseca das coisas, difícil de nomear.
Mas tem um nome. Pode não se de fácil apreensão, porque é camaleónico, mas chama-se sistema capitalista neoliberal, tendo-se disseminado na nossa existência, nas escolas, educação, cultura, comunicação, política, relações e quotidiano. Não apenas uma lógica económica, política ou social, mas uma teia subjetiva e afetiva, que vai construindo a ideia de cada um por si e da chamada meritocracia, que entende sempre o insucesso como algo individual, o que tem grande impacto sobre quem está a crescer e a criar redes de relações, ou sobre quem foi excluído ou abandonado pelo sistema e não consegue ter uma leitura crítica sobre o mesmo, culpabilizando-se.
Não tenhamos ilusões. O mundo atual é caótico, difícil de ler, com mutações, sobreposições, mediações, novas identidades construídas e camadas adicionadas. É aí que surge a extrema-direita, aliciante entre os jovens, ou em quem se sente desorientado, olhando sempre para a contemporaneidade como degenerescência, aproveitando ressentimentos, nas tintas para o conhecimento, vendendo organização, simplismo, respostas fáceis, rápidas e muitas vezes violentas. É verdade, podiam ser as forças progressistas a captar o difuso sentimento de insatisfação exposto em “On Falling”, no sentido do humanismo, do bem-comum, de maior igualdade e do ampliar de espaços de pertença, mas, neste momento, infelizmente, não é esse o cenário.