Baile Funk em Portugal: entre o prazer e o incómodo
Foto: Marília Lima
O Luís Osório, um dos comunicadores mais influentes do espaço mediático luso, na rubrica “postal do dia”, num pequeno texto sobre o género musical brasileiro “baile funk”, alude a temas dançados por adolescentes, numa escola, com letras sobre sexo, drogas e violência, que qualifica como sendo “rascas”. O título do texto é: “O funk brasileiro rebenta-nos de pobreza.”
Enalteço-lhe a coragem por expressar algo que é comum a muitas outras pessoas – é ver os muitos comentários – e ao mesmo tempo pôr-se em causa, interrogando se terá virado reacionário. Mas não me revejo no seu comentário, até porque o seu exercício é problemático – partir de uma experiência e escuta subjetiva, para retratar todo um fenómeno social total, mais até do que um simples género musical, como é o funk brasileiro. Rasura a complexidade do fenómeno, simplificando-o de forma redutora.
Nos últimos anos o género foi ganhando uma visibilidade transversal em Portugal, algo a que não será alheia a influência da vibrante comunidade brasileira, muita dela ligada ao setor cultural. O fenómeno em Portugal tem dois vértices, estando por um lado conectado com formas culturais minoritárias, festas de dança, libertação dos corpos, cultura queer, e por outro com configurações culturais mais mercantilizadas, como o sucesso global da cantora Anitta supõe – também ela geradora de controvérsias – ou o facto de alguns dos temas mais ouvidos aqui serem de “baile funk”.
Dir-se-ia que, hoje, o “baile funk”, localmente, reproduz o mesmo paradoxo que o hip-hop, este a nível global. Ou seja, a cultura hip-hop tornou-se dominante, atravessando todos os espectros sociais, mas ao mesmo tempo, como se constatou há três anos em Portugal através de um relatório de segurança interna, continua a ser estigmatizada, sendo associada à marginalidade, a “zonas sensíveis”, a perigos vários. Todo um programa.
Foto: Marília Lima
O “baile funk” tem uma história rica e multifacetada, que remonta aos anos 1970, e sobre a qual existem imensos pontos de contato – e singularidades – com muitas outras músicas, nascidas em esferas populares, produto de cruzamentos estéticos, e por norma associadas a omissões, marginalidades ou afirmações identitárias, portadora da voz dos historicamente excluídos.
Produto do descalabro do estado brasileiro, as favelas do Rio, constituíam uma espécie de estado paralelo, com leis e dinâmicas próprias, onde a “linguagem” desempenhava um papel fulcral. Era uma espécie de dialeto, com “gíria” e “calão” próprio, que evitava a compreensão de quem era de fora. Tal como existiram sambistas presos por vadiagem e louvor do jogo, também os funkeiros foram incriminados por apologia ao crime e drogas.
O samba foi considerado uma música inculta, o funk foi tratado como bárbaro e primitivo. Marginalizados e combatidos pelo moralismo público, ambos os géneros partilham do mesmo poder: umas vezes são vistos como ameaçadores, outras deliciam, e muitas vezes, produzem os dois efeitos.
Num texto que escrevi há cerca de vinte anos, quando comecei a interessar-me por “baile funk”, começava por analisar o tema “Som de preto” dos Amilcka & Chocolate, popularizado por DJ Malboro, reflexão sobre o próprio género a partir da maneira como era encarado pela classe média e elites brasileiras. No refrão ouvia-se: “É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado.” A ideia comunicada era óbvia. Apesar das reservas e dos estigmas, sendo associado à negritude, à pobreza ou à marginalidade, quando a música se fazia ouvir, ninguém lhe resistia.
Desde os anos 70-80 que existiram várias temáticas que nortearam o funk: a paródia, a denúncia social, a erotização, ou híper-erotização dos corpos ou o relato quotidiano da vida nas ruas, com alusões agressivas e diretas, sejam de denúncia ou de rivalidades. A palavra, como em muitos outros géneros com pontos de contato, é muitas vezes utilizado como mera performance, espécie de sublimação ou reforçar do som, muito longe das manifestações canónicas, próximas da ideia de poesia, da música pop-rock.
Na última década o fenómeno pulverizou-se por completo, é profundamente heterogéneo, com múltiplas variações, movendo-se entre zonas de tensão, entre a domesticação comercial e a rebeldia original, causando, ainda, tanto prazer, como incómodo. Do ponto de vista da fruição desconhece classe, idade, cor e credo. Ao mesmo tempo, ainda demarca profundas diferenças socioculturais, como se verifica pelos ecos do comentário de Luís Osório.
Tanto pode ser reacionário e até homofóbico, como progressista e ocupar vazios sociais, porta-estandarte de gente defraudada e esquecida, com funkeiras e coletivos, cantando as suas práticas, fantasias e aspirações, de forma direta, numa arte heterogénea, em relação com a existência, com distintas apropriações e atravessada, inclusive, por contradições internas.
Não se trata aqui de negar as tensões evidenciadas pelo comentário de Luís Osório, e de outros, mas delas ocuparem todo o espaço de representação, esquecendo-se a criatividade, as pertenças, os afetos, as resistências, as utopias, tantas vezes expressos por temas e canções do “baile funk”.
A mim, pessoalmente, é quando o risco da arte se mistura com a vida a acontecer, conquistando os desejos e as aspirações, inebriando ou desestabilizando, que a abertura para o novo pode acontecer. Mas sei que também existe muita gente que se sente ameaçada pelas mesmas razões, criando-se perceções erradas, validando-se que algo deve ser circunscrito.
A arte pode ser uma manifestação perigosa, dependendo do contexto que a circunda, podendo ocasionar transformações imprevisíveis. O funk é um atestado de não conformidade, tantas vezes arrebatadora, cujo grande trunfo não é, a ocasional, utilização de letras com sexo ou drogas, mas a promessa de que um dia as divisões por estigmas sociais poderão afrouxar, reunindo muita gente sob o signo da dança, da festa, da alegria. O medo de muitos advém daí, dessa promessa que músicas como o “baile funk” encerram.
Voltando à pergunta inicial do Luís Osório, se se estaria a tornar reacionário? Não sou eu que irei responder a essa questão, mas tenho a certeza que se ele se sentasse à mesma mesa que os funkeiros, ou muitos dos que fruem “baile funk”, se iria surpreender pela positiva. Às vezes é apenas isso: compreender e incluir à nossa mesa quem nunca lá esteve.