As Praxes Incritas no dia-a-dia
É a altura dos grupos de capa e batina, as praxes. Ontem diziam-me no quiosque onde vou beber café, perto de uma conhecida universidade, perante um grupo que subordinava outro, que a novidade deste ano têm sido as saudações nazis.
Não vi. Não sei. Mas a ser verdade não fico muito espantado. Se normalizamos o fascismo em todo o lado porque não haveria ele de chegar a rituais que mimetizam as interações sociais, apesar de nem sempre sermos capazes de o reconhecer?
Há dias passou-me pelos olhos um texto de opinião que criticava as praxes a partir daquilo que seria a “hipocrisia da geração universitária”, que por um lado exige liberdade e justiça, por outro perpetua lógicas de humilhação em nome da tradição.
Não li o texto na totalidade, era isto que constava da introdução. A mim parece-me que essa hipocrisia é muito mais lata, como já escrevi de outras vezes. Está inscrita na própria lógica social. Não é por acaso que as discussões em torno das praxes, apesar do Meco, resultam em debates confortáveis. Porque não nos colocamos, a nós, em causa. Falamos delas como se não tivéssemos nada a ver com elas.
Os que são a favor argumentam com o seu valor de integração. Os contras, que são rituais violentos. Outros relativizam, argumentando que é coisa de “jovens” e é só durante um “curto período de tempo”. As universidades encolhem os ombros ou falam de “tradição”. E opinião pública em geral olha para elas como uma espécie de microcosmos, uma coisa “lá dos estudantes”, ou um momento de exceção à norma.
Será? Aquilo que vemos não será reprodução encenada da nossa vida coletiva e das relações sociais um pouco por todo o lado, no nosso quotidiano? O grotesco que nos é dado a ver não será semelhante aquilo que enfrentamos todos os dias? Aquilo que é exibido não é aquilo que nos dizem que tem de ser feito para “vencermos”?
Lá estão os jogos e as hierarquias de poder. A competição levada ao extremo. A indiferença. A ausência de cooperação. O salve-se quem puder que permite que aqueles que são submetidos num ano, no seguinte, sejam os algozes. O sofrimento e o sacrifício inicial, vistos como valores de ascensão social, para de seguida subjugar.
A ideia de que as relações sociais não podem ser de igual para igual. A redução da vida em comunidade à lógica do senhor e do escravo. A linguagem do controlo e vigilância espalhada por todo o lado. Essa ideia que se tem de obedecer à autoridade, por mais ilegítima, brutalizada e humilhante que ela seja.
Às vezes vejo perguntar, com paternalismo, porque é que os estudantes alvo de violências se deixam submeter? Ora aí está uma boa questão para pensarmos coletivamente, interrogando porque é que nós, perante a exclusão, a precariedade, as desigualdades, os salários miseráveis, os empregos de merda, as rendas exorbitantes, as expulsões humilhantes, o genocídio em Gaza, não nos revoltamos?
Pois é. Assim fica mais difícil, não é? A violência simulada nas praxes é pobre. É como se só existisse espaço para imaginar que os outros têm de ser excluídos ou encostados à parede, para nós triunfarmos. Não é isso que vemos todos os dias acontecer, sem praxes? É verdade, não tem de ser assim. Felizmente existem muitas outras formas relacionais saudáveis. Mas devia fazer-nos pensar porque é que são exatamente as mais negativas que vemos ser representadas nas praxes.