Um País a Desmoronar-se e a Ópera Crioula de Dino e Adilson a não Deixar
Esta sexta-feira, pela primeira vez no Portugal democrático, um partido anti-democracia, liderou as intenções de voto, enquanto na Assembleia se debateu as mudanças na Lei da Nacionalidade para restringir o acesso à cidadania portuguesa.
O brutalismo reina em Portugal, com desmantelamento de direitos conquistados, hostilização aos mais vulneráveis e enfraquecimento dos núcleos clássicos de contrapoder (universidade, cultura, jornalismo), enquanto a imigração serve para distrair dos verdadeiros problemas (habitação, saúde, desigualdades). A encobrir tudo, o manto da burocracia, que normaliza as maiores violências quotidianas.
À noite estreou no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a ópera “Adilson”, desafio de John Romão a Dino d’ Santiago, no contexto da Boca Bienal. Quando se soube há meses, os do costume, que antes habitavam apenas as caixas de comentários de espaços digitais, e agora exibem a sua boçalidade em todo o lado, escarneceram.
A mim não me admirou. Há muito que vejo em Dino um artista total, muito além do mero intérprete vocal. Canta, toca, desenha, pinta, escreve, sabe comunicar visualmente, tem uma noção de espetáculo completa e, acima de tudo, tem ideias e sabe pô-las em prática. Como se não bastasse, contamina o coletivo com o seu querer.
A ópera “Adilson” é trabalho de muitos (a partir de texto de Rui Catalão, direção musical de Martim Sousa Tavares, com orquestra, interpretações de Michelle Mara, Cati, NBC e muitos outros intervenientes, entre eles, Adilson Correia Duarte) mas nota-se o toque de Dino nos mais diversos elementos, da cenografia à música – aqui e ali a evocar os Sault mais orquestrais e corais – aos adereços, á forma como canto lírico e crioulo se enlaçam e, claro, na narrativa, real, das entranhas para fora.
Adilson, seu amigo de infância de Quarteira, há 41 anos, viveu sempre em Portugal – com exceção dos primeiros 11 meses de vida – e ainda não alcançou a nacionalidade portuguesa.
Um percurso que faz ressonância em tantas outras biografias semelhantes que passam pelo pesadelo de ser indocumentado. Trocas e baldrocas, da burocracia, quando existe para dissimular estigmas e agressões. Não é um espetáculo que vemos, embora também o seja – e que belas vozes se fazem ouvir – é vida a acontecer em palco, é a realidade a pulsar, a solicitar de todos, luta e amor.
Começou com Mais, palestiniana de Nazaré, a cantar em árabe, e fechou em apoteose com um abraço, carregado de dignidade, de Dino a Adilson, e muita emoção e olhos brilhantes na assistência.
Quanto um país parece desmoronar-se, pode acontecer isto, arte e vida a acontecer em palco, e se um dia até o fim da arte for decretado (para glosar A Garota Não) haverá sempre portugueses como Dino e Adilson a sonhar e a resistir em qualquer parte, que farão uma ópera sobre isso.