BaianaSystem: “Améfrica / A Primavera chegou”

Foto: Bob Wolfenson

É fácil afundarmo-nos na desesperança. Os sinais não são animadores. A impotência parece ter-se imposto por estes dias, para quem acredita num mundo mais igual e justo.


Ontem, noite dentro, chegava a casa, depois de um jantar onde o ambiente ia nesse sentido, quando me chegou aos ouvidos uma canção, “Porta retrato da família brasileira” dos brasileiros BaianaSystem, com Dino d’ Santiago na voz e Kalaf na construção lírica e sonora.

No refrão pode ouvir-se: “Améfrica / Ladina Améfrica / A Primavera chegou”, numa alusão à obra de Lélia Gonzalez (1935 – 1994), expoente do movimento negro, que criou as categorias “amefricanidade” e “Améfrica Ladina” para contestar a ideia de uma formação histórico-cultural apenas branca e europeia, refletindo sobre a ligação Brasil, África e suas diásporas, com histórias de lutas e resistências que se cruzam.


Conquistado por essa canção, fui ouvir o resto do álbum, agora editado. Que energia boa. Que alento. Que bálsamo. Respira-se prazer em tocar em grupo e respeito por ideias, culturas, experiências particulares e coletivas. Chama-se “O Mundo dá Voltas” e é uma viagem por quem o faz desperto, sabendo que o saber pode estar ao lado, do outro lado do mundo, ou no futuro ancestral, diria Ailton Krenak. Com mais de uma década de atividade e cinco álbuns, os Baiana praticam um som uno a partir de hip-hop, dub, axé, pagode ou afoxé, mistura consistente de ritmo e poesia.


Para além dos muitos elementos, existem convidados – Gilberto Gil, Anitta, Emicida, Pitty, Seu Jorge, Melly e, claro, Dino d’ Santiago, que canta também na faixa inicial, “Batukerê”, onde fica exposto esse enlace entre referências latinas e afro-luso-brasileiras. O álbum acaba por ser uma espécie de dança coletiva que poderia resultar dispersa, mas é consistente, fluída, transcendente, mantra revigorante para estes dias de desalento.


Por vezes, por entre a guitarra baiana, a presença da Orquestra AfroSinfónica e as vozes ancestrais, poder-se-ia pensar numa espécie de Sault lusófonos, celebração da existência em tempos desafiadores, retrato de trajetórias, batalhas que se travam e das voltas que a vida individual ou coletiva dá.

Não dá para desistir.



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