JOHNY PITTS: “Vi um continente europeu cheio de pessoas como eu. E isso foi uma grande descoberta”
Foto: Johny Pitts
De Moscovo a Lisboa, com passagem por Marselha ou Berlim. No livro Afropeu – A Diáspora Negra na Europa, o inglês Johny Pitts leva-nos por lugares tantas vezes invisíveis, num desafio à nossa percepção da Europa.
As prateleiras preguiçosas e dominantes têm dificuldade em enquadrá-lo. Por facilidade dizemos que é escritor e fotógrafo, interessado nos temas da identidade afro-europeia, mas o inglês Johny Pitts é mais do que isso, movendo-se naquele terreno instável onde a academia, os estudos culturais, a critica cultural, o jornalismo, a cultura popular, a música, a arte e as questões sociopolíticas, fazem parte da mesma totalidade.
Não surpreende que algumas das suas influências – gente dos estudos culturais como Stuart Hall ou Paul Gilroy, ou ainda mais indefiníveis, como os brilhantes Kodwo Eshun ou Mark Fisher – sejam pensadores híbridos, sem uma identidade estável, em todos os domínios. Agora acaba de ver traduzido para português o livro Afropean (2019), que recebeu o título de Afropeu – A Diáspora Negra na Europa (Edi. Temas e Debates, tradução de Bruno Vieira Amaral). Pelo mesmo recebeu vários galardões, como o Prémio Europeu de Ensaio de 2021, o Leipzig Book Award for European Understanding 2021 ou o Jhalak Prize 2020.
É uma viagem por cidades e locais onde europeus de ascendência africana jogam com obediências múltiplas e constroem novas identidades, constituindo um caleidoscópio humano que só pode ser entendido se assumirmos que vivemos num continente em mutação. Na companhia das suas palavras e fotos, captamos o espírito de cada lugar, fazendo com que a nossa percepção sobre a Europa seja desafiada e reimaginada. Conhecemos comunidades submetidas à indiferença ou ao isolamento, por entre bairros de cabo-verdianos ou mercados argelinos, numa Europa tantas vezes oculta, forjada nas periferias, numa viagem transformadora, em primeiro lugar, para o próprio Johny Pitts, que ao revelar pessoas, comunidades ou territórios, se descobre a si próprio.
Foto: Johny Pipps
É um livro relevante, numa altura em que um número maior de pessoas está disponível para interrogar legados coloniais, abrindo brechas por entre a invisibilidade ou narrativas idealizadas, numa desconstrução para a qual têm contribuído músicos, artistas ou escritores, reflectindo novas leituras e introduzindo novos modos de ser e sentir essa nova Europa.
“Sinto que cresci num território em construção, entre culturas, raças e espaços, e o meu trabalho consiste em dar alguma coerência a esse lugar, em vez de me considerar meio isto, ou mistura daquilo. Caminho sobre uma totalidade. É daí que o termo afropeu surge, como se fosse uma plataforma que me permite acomodar ou incorporar dualidades e influências na minha identidade, e de certa forma transcendê-las.”
Di-lo Johny Pitts, o curador da publicação online Afropean.com, filho de pai americano negro e mãe inglesa branca, com passaporte duplo, e que cresceu entre Sheffield e Londres. Nos anos 90 o termo afropeu surgiu, pela mente de David Byrne, para pensar sobre artistas e músicos (Zap Mama, Les Nubians) que estavam a trabalhar novas estéticas que eram uma mistura de influências europeias e africanas. Em digressão com os Talking Heads, no início dos anos 90, disse que estava a vislumbrar um novo continente com as comunidades negras a terem uma saudável influência sobre a cultura europeia. Foi aí que tudo começou para Pitts.
Documentando uma viagem de cinco meses por diversas cidades europeias (Paris, Marselha, Bruxelas, Amesterdão, Berlim, Estocolmo, Moscovo e Lisboa) e explorando o que significa ser negro na Europa, acompanhado de caderno de apontamentos e uma máquina fotográfica, eis um livro que combina de elementos de reportagem, com reflexões e história politica. Há dias esteve em Lisboa. Falámos com ele, começando por Marselha, a cidade francesa que mais fortes impressões lhe deixou.
P – Ao estar, em Marselha, há semanas, lembrei-me do que escreve no seu livro. Foram poucos dias, mas deu para sentir que, ao contrário de outras urbes europeias que instrumentalizam ideias de interculturalidade, ou têm uma relação cínica com o conceito, ali respira-se mesmo esse ambiente, com o centro, e não apenas as periferias, habitadas e vividas por pessoas de origens díspares. É algo real. Há mesmo mistura. Pode esclarecer porque valorizou Marselha?
R – É interessante começar por falar de Marselha porque é uma cidade que me faz lembrar Lisboa, não só ao nível da topografia, mas também da mistura cultural. Falava ontem com um amigo britânico que está aqui a viver há pouco tempo e ele dizia-se surpreendido. Na sua visão Portugal é excessivamente acolhedor para com os turistas. Dizia ter ficado surpreso porque um pouco por toda a Europa é um tipo de indústria que, cada vez mais, é encarada como predatória. Provavelmente isso não acontece aqui por contingências económicas. Não sei. O que parece evidente é que Marselha, nesse sentido, é diferente. É uma cidade que te acolhe e aceita, mas tens que te tornar num marselhês. É um pouco indiferente aos meros expatriados, ou turistas por uns dias. É rude. Pode-se sentir tensão nas ruas e, claro, existem problemas. Mas não é, como afirmou, uma versão cínica do multiculturismo, onde se apregoa a toda a hora a diversidade, mas os redutos onde cada um permanece são quase sempre imóveis, com as classes socias, ou as identidades raciais, bem circunscritas e delimitadas. Não é uma cidade-Benetton, esse tipo de multiculturalismo corporativo e publicitário. É real, como diz. Talvez por isso tenha sido a cidade onde vi menos aquele tipo de pessoas que se avistam em todas as outras, jovens, brancos, com poder de compra, ligados a profissões liberais, vestindo de forma muito semelhante, munidos de portátil, muitos trabalhando à distância para multinacionais.
P – O que é curioso é que essa orgânica que nomeia, essa veracidade que a cidade transporta, é também aquilo que leva muitas pessoas a olhá-la com desconfiança, caracterizando-a como sendo algo perigosa.
R – Claro! É uma cidade onde se vêem pessoas a argumentar umas com as outras, às vezes em consenso, outras em divergência, mas onde se sente que a vida é real. Não é faz-de-conta. Para muitos isso pode ser confuso – a imperfeição acontece quando pessoas comunicam verdadeiramente umas com as outras, se encontram e dialogam, seja para concordarem ou discordarem. Num mundo onde os algoritmos produzem comportamentos padrão, conformismo e bolhas sociais, onde ninguém já se esforça por comunicar entre diferentes, optando por estar sempre entre semelhantes, Marselha parece ser um antídoto contra tudo isso. Confronta-te contigo e com os outros. Foi por isso que teve tanto impacto em mim. Senti-me em casa. Pode ter má reputação, mas é magnífica. Foi um dos poucos locais onde senti que as comunidades negras não foram banidas da vida cívica mais comum. Já depois de o livro ter saído, mudei-me para lá, mas depois a pandemia surgiu e acabámos, eu e a minha família, por nos deslocar para junto dos nossos pais. Mas continuo com a ideia de me mudar para lá, mais cedo, ou mais tarde.
P- O livro começa com uma citação retirada da excelente obra Um Mundo Sem Regras, do escritor libanês-francês Amin Maalouf, que reflecte sobre indivíduos de dupla condição ou identidades múltiplas (nacionais, étnicas ou religiosas). A sociedade passa o tempo a pressioná-los para que optem, sem entender que podem acumular e que, nesse movimento, pelo facto de terem uma dupla condição (no caso de Maalouf, ser ocidental e árabe) poderem deter um papel relevante na criação de pontes e no enfraquecer das incompreensões.
R – Esse livro do Maalouf é importante por muitas razões. As reflexões provêm do final dos anos 90, um período interessante, que parecia ser uma pequena janela de oportunidade para entrarmos no novo milénio de outra maneira, com vários muros a caírem e as pessoas parecendo predispostas para a construção conjunta. Mas depois veio o 11 de Setembro, e outros eventos, e a trajectória foi diferente, levando muita gente a interrogar-se se teriam existido realmente mudanças significativas antes. Mas o livro saiu naquela altura e Maalouf mostrava que havia ali uma oportunidade de reinvenção do mundo, contrariando a tese do conflito de civilizações. Na sua visão há apenas uma civilização. Ou morremos juntos, ou salvamo-nos juntos. Daí que afirme que um europeu-islâmico possa ser valorizado por ter um conhecimento acumulado, em vez de ser ostracizado pela mesma razão. Com os afro-europeus o caso é semelhante. O que ele dizia é que se não aceitarmos essas múltiplas origens – que, na verdade, são o cerne de qualquer indivíduo, nação ou continente – temos razões para nos preocuparmos.
Foto: Johny Pitts
P – Até porque, citando outro autor, Zygmunt Bauman, nas sociedades contemporâneas, múltiplas e heterogéneas, por mais refúgios de semelhança que procuremos, “estamos condenados a coabitar” entre diferentes. Não há outra saída. A não ser o conflito, que não é saída.
R – Exactamente. Esse tipo de pessoas, a quem passamos o tempo a reclamar uma escolha identitária, está na linha da frente desses muros imaginários que passamos o tempo a erguer. Maalouf percebeu-o bem. Quando ele escreveu esse livro, sem deixar de ter uma visão lúcida e critica, abria uma zona de esperança para que os cidadãos e os políticos entendessem que a solução era evitar separações artificiais e propunha caminhos possíveis para se chegar lá. E era aí que nomeava o papel relevante daqueles que seriam capazes de provocar múltiplas alianças – porque conheciam os diversos lados que conduziam a divisões – no sentido de um maior conhecimento e entendimento mútuo. No fim do livro, ele projecta que daí a 20 ou 30 anos, os seus netos, ao lê-lo, se iriam interrogar qual a razão de o avô ter escrito sobre problemas identitários. Ou seja, idealizava que a Europa iria saber gerir e superar as barreiras que foi erguendo e que aquilo que ali era nomeado por ele se haveria de tornar irrelevante, mas infelizmente não é assim. Falei com ele recentemente e, claro, concluímos que o livro se mantém actual, para grande tristeza dele. Também eu espero que daqui a 20 ou 30 anos as pessoas se interroguem porque é que senti necessidade de escrever este livro agora? E se questionem que raio de designação é essa, afropeu?
P – Que sejam retirados os hífens, conceitos que reflectem uma tentativa de unificar algo, mas que nos devolvem ainda uma divisão?
R- Precisamente! O termo afropeu permite uma identidade sem hífen. Não somos mistos, metade isto, ou aquilo. Os negros na Europa têm uma história, embora muitas vezes não constem nos livros de referência. Espero que essa palavra possa desaparecer e não ter qualquer relevo dentro de alguns anos. Seria um bom sintoma. Da mesma maneira que seria bom que alcançássemos igualdade. Aí seríamos humanos de igual maneira e não haveria que corrigir assimetrias baseadas na cor da pele.
P – Mas, nesta fase, afropeu é uma palavra que nos ajuda a situar e que contém uma carga descritiva sobre uma Europa em mudança. Uma transformação que tem a ver com fluxos humanos e culturais. Quando foi utilizada por David Byrne há trinta anos para cartografar projectos musicais híbridos, meio europeus, meio africanos, como as Zap Mama, continha uma dimensão de utopia. Havia essa projecção de que no futuro não iriamos estar aqui a falar de identidades afro-qualquer-coisa. Não haveria nós e outros. Apenas nós, europeus.
R – Sim, havia essa visão de que algo vai desaparecer e uma outra nascer, sem compromissos, sem estarmos a olhar para o bilhete de identidade a partir de um legado cultural específico, como se existisse um chapéu-de-chuva cultural onde todos nos pudéssemos abrigar sem qualquer tipo de problema. Mas neste momento parece-me que a palavra é ainda pertinente e isso vê-se, por exemplo, nas diversas estatísticas que são feitas, em países como França e não só, sobre raça e etnicidade. A pele negra, ou a origem familiar, é ainda obstáculo para se ser francês de pleno direito, com direitos e obrigações. As pessoas querem ser francesas, mas o sistema não lhes permite que participem na sociedade civil como as restantes, por causa da cor da pele ou da origem. É por isso que afropeu contém um elemento de utopia. É um espaço por vir. Um lugar para imaginar. Claro que quando me perguntam de onde sou, ou as minhas origens, não respondo que sou afropeu – a palavra faz-me sentido como se fosse uma suspensão, um lugar de experiencias vividas onde se pode criar, imaginar e propor conexões com alguma solidez.
P – Uma particularidade do livro é a mistura de registos. Não é um ensaio académico, nem jornalístico, nem é um livro clássico de viagens, mas acaba por conter elementos de todas essas narrativas, notando-se ao mesmo tempo uma grande atenção à quotidianidade, às relações intersubjectivas, sem renegar um pensamento sociopolítico mais estruturado. Transporta-nos para os ambientes, mas não se limita à descrição. Há reflexão. Há articulação entre todas essas dimensões.
R – É um grande cumprimento, porque me agrada descrever o livro como uma bricolagem. Na verdade, no início, apenas queria viajar e discorrer sobre experiências quotidianas. As fotografias do livro contêm esse ambiente. Não queria reportar protestos, lutas ou festas, apenas o dia-a-dia. No Reino Unido, e eventualmente em outros países, para sermos publicados temos de exibir de onde viemos – seja uma escola privada, ou Cambridge, ou um espaço qualquer académico oficial – e por isso este tipo de abordagens acaba por ter um olhar muito estreito. E isso aplica-se também à comunidade negra. Eu quis fazer qualquer coisa num registo faça-você-mesmo mais igualitário, em termos da experiência negra. Não queria de todo fazer um estudo sobre pós-colonialismo. Durante a minha viagem falo com músicos, artistas ou académicos, mas também com seguranças ou operários. Todas essas perspectivas são válidas para se tentar perceber a experiencia do ser-se negro na Europa. Queria ser o mais aberto possível, sem ser prescritivo. Quando estava numa pequena unidade hoteleira e conhecia alguém isso era integrado naturalmente no relato da viagem. Guardei sempre espaço para esse tipo de relações, até porque pensamos saber o que é a negritude ou o que significa ser europeu, mas depois quando transportamos esses conceitos para a realidade percebemos que as coisas são muito mais emaranhadas. Gosto disso. Em Estocolmo confrontei-me, e discordei a sério, de pessoas da comunidade negra, que tinham um pensamento próximo da extrema-direita, e isso faz parte das complexidades. Temos de ser mais honestos e assumir que estes assuntos são muito intrincados. Existe uma tentação – política, mas não só – de tratar estas questões da identidade de forma simplista, recorrendo a oposições binárias. Às vezes as coisas são mais intricadas do que tendemos a achar. Há que ouvir diferentes versões.
P – Estamos a viver um período estranho na Europa. Há cada vez mais afropeus com voz no espaço público, mas temos cada vez mais nacionalismos e forças de extrema-direita que jogam com o medo dessa maior visibilidade. Finalmente, importa perceber se essa maior integração não é ilusória, como o exemplo do bairro da Cova da Moura, na Lisboa metropolitana, acaba por reflectir, porque continua a haver grandes estratificações e muitas pessoas continuam invisíveis.
R – É difícil perceber se, nos últimos dez anos, andámos para a frente ou para trás. Em muitos aspectos, do ponto de vista político, sinto que andámos para trás, com alguns líderes nacionalistas e populistas a ganharem mais expressão. Talvez como reacção, como afirma, a uma maior presença no espaço público de vozes progressistas. Por outro lado, tendo a pensar que em termos de consciência social, foram dados passos muito relevantes nos últimos anos. Não diria que estou optimista, mas mantenho-me esperançoso. Sinto que há uma nova geração muito desejosa que este tipo de questões seja abordado de outras maneiras.
Faz-me lembrar um pouco o ambiente na Europa, ou mais concretamente no Reino Unido, quando Margaret Thatcher estava no poder. Foi um tempo terrível para as classes trabalhadoras e para a comunidade negra, mas por vezes, passe a expressão, os perdedores ganham, se conseguirem caminhar na mesma direcção e reagirem, encontrando com criatividade formas de sobreviver. O hip-hop, por exemplo, nasce daí, dessa ideia de subalternidade criativa, forma de transcender problemas com imaginação. Claro que ninguém deseja que seja assim, mas quando acontece, as pessoas tendem a encontrar formas de criar alternativas. O período de Thatcher no poder foi, por exemplo, um dos mais estimulantes ao nível da música, do pensamento e dos Estudos Culturais, com Stuart Hall ou Paul Gilroy, ou das organizações colectivas nascidas no seio da sociedade civil, como o Rock Against Racism ou Black Audio Film Collective. Naqueles tempos difíceis houve um toque a reunir, uma vontade de renascer, um reactivar da luta politica. Sinto algum paralelo entre esse tempo e o que temos agora.
P – Um movimento como o #BlackLivesMatter, ou a afirmação de projectos como os Sault, ou a renovação do jazz e até do rock britânico, como reacção, e no pós-Brexit, poderão ser um paralelo?
R – Talvez. É inegável o papel da música e das artes em geral na mudança de mentalidades, na afirmação cultural, e no deslocar destes debates para o espaço público. É engraçado pensarmos que, nos anos 2000, pelo menos é essa a minha experiencia, quase não se podia falar de racismo. Era como se a sociedade tivesse interiorizado que havíamos chegado a um ponto em que já não fazia grande sentido falar no assunto. Estava resolvido. “Como te atreves a chamar-me racista!”, exclamava-se. Estávamos enganados. Era algo que havíamos deitado para debaixo do tapete, que ocultámos de forma artificial, mas que não resolvemos. Ao menos agora volta a falar-se, é enunciado, aponta-se, havendo muita a gente a sentir-se posta em causa, mas isso faz parte destes processos. E isso acontece, concordo, porque há músicos, artistas ou intelectuais que foram reagindo a figuras como Trump ou Boris Johnson. Por isso, espero, que exista um novo toque a reunir por parte das pessoas que acham que é possível ir construindo um mundo mais democrático, justo e igualitário.
P – A memória está muito presente no livro, até porque o racismo é indissociável da herança colonial, mas a minha curiosidade ia no sentido de perceber se, nas cidades que visitou, teve interesse em perceber como é que esse passado está inscrito no espaço público.
R – A premissa da viagem era olhar para a Europa contemporânea, para o que está a acontecer agora, mas ao fazê-lo é inevitável sentir a memória do passado. Ele está inscrito no que somos hoje. Na preparação para a viagem, fui lendo muito, e pude senti-lo de imediato. É impossível pensar a Europa de hoje sem uma visão crítica do passado. O passado não está atrás de nós, rodeia-nos das mais diversas maneiras, assumindo formas inesperadas. Portanto, sim, esse legado do colonialismo continua por aí, nas ruas e praças, mas não é apenas no espaço público. É também nas estruturas de poder, sejam elas micro ou macro, e na forma como a Europa funciona como um todo. Vê-se isso, percebendo quem tem mais oportunidades na vida. E nesse sentido, o capitalismo acaba por estar em correlação, ou constituiu uma espécie de deslocação, do colonialismo.
Este livro emerge na ressaca da crise financeira de 2008, que é um período onde o racismo cresce e figuras como Trump irrompem. O multiculturalismo acaba por ser, de certa forma, um produto do imperialismo – a razão por que existem negros em Portugal ou Inglaterra, é porque portugueses e ingleses estiveram em África. O multiculturismo é resultado disso. Onde quero chegar? As grandes cidades de concentração de capital, seja Londres ou Nova Iorque, que atraem gente à procura de novas oportunidades, sempre que as estruturas neoliberais abanam ou uma crise financeira irrompe – como aconteceu em 2008 – fazem vir ao de cima o racismo. Culpa-se o multiculturalismo, porque se atacam sintomas, e não causas. Neste caso, o vírus do capitalismo. O erro é esse. É incrível como é que esse legado colonial ainda está tão vivo e lugares como a Cova da Moura dizem-nos muito sobre isso. Falamos de cidadãos negros portugueses que vivem em Lisboa, mas que são invisíveis, estando separados da cidade, da cidadania e de Portugal, mesmo sendo portugueses. E isso é ainda devedor do passado colonial de Portugal.
P – As desigualdades económicas, como as crises, criam mais espaço para o irromper do racismo. Mas não haverá uma espécie de aversão à igualdade, uma vontade de manter a superioridade sobre aqueles que vamos afrontando como inferiores, que não escolhe camadas sociais?
R – Depende da forma como entendemos o racismo. Para mim o racismo autêntico está sempre ligado ao poder económico. Claro que o racismo quotidiano, quando somos ofendidos de forma preconceituosa, existe e deve ser erradicado. Mas racismo real, a sério, chamemos-lhe assim, é quando alguém, ou uma estrutura de poder, de forma activa, e por norma, economicamente e de forma deliberada, subjuga alguém. É esse tipo de relação que quero defrontar. Cresci num meio pequeno de gente trabalhadora, numa misturada incrível de miúdos, com raízes na Somália, Jamaica ou Paquistão, e que perante a presença da diferença – sei lá, um miúdo sardento e de cabelo ruivo – acabávamos a chamar nomes uns aos outros de imediato. Mas isso não era propriamente racismo. Era na verdade uma forma de convivialidade em muitas dimensões. O racismo a sério irrompe quando não se encontra trabalho por causa da cor da pele.
P – Por falar no ambiente onde cresceu, por vezes refere a cidade de Sheffield, como exemplo de tudo o que está a mencionar – uma cidade que teve dificuldade em transitar da era pós-industrial para o capitalismo digital, de ideias colectivas para vidas mais individualistas.
R – Sim. Acima de tudo parece-me que a geração do meu pai, independentemente das dificuldades, era mais associada, colectiva, com vontade de enfrentar problemas de forma comum. Depois, aos poucos, tudo isso se foi desintegrando. As existências atomizaram-se. Havia uma classe média trabalhadora que deu lugar a algo mais indefinível e que hoje tem tradução em inúmeras actividades precárias ou mal pagas. A diferença é que essa amálgama indefinida não permite uma consciência colectiva e, sim, a cidade tornou-se num local mais individualista. Isso percebe-se também pelo ambiente cultural. Se recuarmos até aos anos 80 ou 90 percebemos que havia uma cena electrónica muito vibrante, dos Cabaret Voltaire à editora Warp. Nos últimos tempos o único grupo com impacto a sair dali foram os Arctic Monkeys. Há míngua de coisas relevantes, do ponto de vista cultural, a acontecer. Há excepções, a um nível mais subterrâneo, mas sem a mesma ressonância cultural de outros tempos. Algum hip-hop ou bandas experimentais. Existe um colectivo de que gosto muito. São do noroeste de Inglaterra, alguns de Sheffield, outros de Bolton, Blackpool ou Manchester, os Cult Of The Damned, que são muito interessantes e, mais uma vez, são produto de uma grande misturada multicultural, com miúdos de origem paquistanesa ou Jamaica.
P – Sei que prepara um novo livro, de alguma maneira marcado por uma ideia persistente na última década e meia: a mudança da ideia de futuro. Um futuro que nos é continuamente negado ou por alcançar.
R – Tem muito a ver com o que expunha sobre Sheffield, essa ausência de criatividade na abordagem aos conflitos, como se fosse difícil surpreender. De alguma forma tem a ver com algumas das ideias de Mark Fisher, que constituiu uma grande perda quando morreu há alguns anos. O seu trabalho, em conjunto com o de Kodwo Eshun, na universidade Goldsmiths, é brilhante. Ambos operaram muito a partir dessa ideia da criação de futuros alternativos. O Kodwo, em livros como More Brilliant Than The Sun (1998), opera muito a partir de ideias da ficção-cientifica, que manuseia para pensar sobre a experiência da negritude – toda a narrativa da cultura popular dos alienígenas que ameaçam ou aterram no planeta terra, e levam ou adoptam tudo à sua passagem, constituiu uma excelente plataforma para pensar a história da escravatura. Ele achava que a ficção-cientifica era uma forma de compreender esses mecanismos. Já Mark Fisher abordava a ideia de que vivemos no interior de um sistema em putrefacção, que é incapaz de providenciar qualquer ideia alternativa de futuro, levando à conhecida enunciação, de que é mais fácil imaginar o fim do mundo, do que o fim do capitalismo. O meu novo trabalho olha para todos esses futuros enunciados e falhados ao longo do século XX. Mergulho nessas ruínas. Mais uma vez, como em Afropeu, situo-me num espaço liminar entre dois mundos, desta vez geracional, entre quem cresceu antes e depois das redes sociais e do digital. Quero explorar visões do passado sobre o futuro. E ver se é possível pensar algo de novo a partir das ruínas dessas visões. Tenho uma filha ainda pequena. Tenho que acreditar que existe um futuro para ela.
P – Se Marselha foi a cidade onde se sentiu em casa, e nesse sentido, mais próxima de uma ideia de Europa mais coesa e igualitária, que lugar ocupou Lisboa nessa ligação afectiva que foi desenhando?
R – É uma cidade em mudança muito acelerada, com coisas positivas, mas outras que dão muito que pensar. Quando aqui vim pela primeira vez, em 2011, parecia uma cidade muito tranquila. Depois fui vindo mais vezes. E a diferença era abissal a última vez que aqui estive, pouco antes da pandemia, com a loucura do turismo a contaminar todos os recantos. A minha leitura é que será um efeito da crise financeira e é natural que as pessoas tentem encontrar formas de fazer dinheiro, mas estes processos, está mais do que estudado, tendem a ter efeitos perversos, que deveriam ser acautelados. O que me preocupa, é que lendo todas aquelas publicações sobre moda, estilos de vida e destinos, Lisboa está sempre lá, apontada como o sitio a descobrir e para onde os empreendedores podem vir com o seu portátil, depois de um mergulho no oceano ou coisa parecida. Isso é preocupante, porque a tendência será a criação de maiores desigualdades no acesso a tudo o que é essencial, habitação, educação, cidadania. Ou seja, a tendência será existirem mais redutos de diferença, com os mais desfavorecidos, como as comunidades negras, remetidos para ilhas. Em Portugal, e no resto da Europa, não se pode fechar os olhos às enormes desigualdades, de contrário, continuaremos a construir ilhas de populações marginalizadas. Por outro lado, vejo em Lisboa, como no resto da Europa, muitas oportunidades e zonas de criação de solidariedades. Na verdade, aqui, ou noutras cidades, vi um continente cheio de pessoas como eu. E isso foi uma grande descoberta.
Texto publicado no jornal Público em Junho de 2022.