Bryan Ferry: O Homem sem Medo de Desfrutar da Vida

Bryan Ferry faz 80 anos, este 26 de Setembro. Em 2007, tinha ele acabado de lançar um álbum de versões de canções de Bob Dylan intitulado “Dynalesque”, fui entrevistá-lo a Londres, e encontrei alguém que dizia que, finalmente, perdera o medo de desfrutar da vida, discorrendo sobre golfe, Brian Eno, Roxy Music, envelher, Dylan, arte, Albufeira, rap e hotéis.

Na quarta-feira passada entrava-se no hotel Mandarin Oriental, em Knightsbridge, Londres, e percebia-se de imediato que estávamos em dia de Brit Awards. Logo à entrada estava Steven Tyler dos Aerosmith, loira espampanante ao lado. Na direcção do elevador, vislumbrava-se Nelly Furtado. No quarto piso, Corinne Bailey Rae parecia importunada com o mundo, logo ela que tem um ar tão gracioso. Os funcionários, solícitos, vestidos como se fossem receber a Rainha, tentavam agradar às estrelas, mas elas pareciam muito inquietas. Alheio a tudo isto, estava Bryan Ferry. “Os Brit Awards? Não ligo. Nunca vi. É apenas um programa de TV”, diz-nos, enquanto é fotografado sobre um sofá de veludo.

 

Fixando aquele momento, podíamos aceder ao paradigma Bryan Ferry: o tipo sedutor, elegante, sofisticado, exemplo perfeito de como é possível envelhecer com dignidade no universo pop. O tipo que estudou arte, seduz mulheres bonitas, abriu as portas do “glam rock” nos anos 70 com os Roxy Music ao lado de Brian Eno e que, a solo, se especializou em criar versões – com destaque para Bob Dylan, do qual havia gravado, em 1973, “A hard rain’s a-gonna fall”, e que em 2002, no seu último álbum, “Frantic”, voltou a abordar em três canções. A 5 de Março vai regressar com “Dynalesque”, uma dose inteira de versões de Bob.

Parecia tudo acomodado para confirmarmos o paradigma, mas Bryan Ferry cinco minutos depois das fotos, à nossa frente, parece disponível para, pelo menos, decompor um pouco essa imagem. 

P – Sessões de fotografia ou entrevistas encara-as com prazer ou apenas como algo que faz parte do seu trabalho?

R – Faz parte do trabalho, mas é também prazer, porque são coisas que faço apenas de vez em quando, com intervalos de dois ou três anos. Quando lanço um disco esqueço-me do trabalho que envolve. Pode ser cansativo, mas é por uma boa causa. Não me interprete mal – sou um sortudo por estar nesta actividade, mas a melhor parte dela é criar o disco, não é falar sobre ele.

P – Nos anos 80 quase desistiu das digressões e durante anos afirmou que vivia o estar em palco com tensão. Nos últimos tempos parece ter redescoberto o prazer do palco, porque a solo, ou com os Roxy Music, não tem parado. O que mudou?

R – Desfruto mais hoje. Não tenho medo do erro. Continuo nervoso quando entro em palco, mas sinto-me mais confiante. Sou capaz de começar um concerto, sozinho, ao piano. Há alguns anos, nem pensar. Teria que ter toda a gente à minha volta. Hoje sinto-me mais relaxado. Mas também disse isso porque as digressões podem ser extremamente penosas e cansativas.

P – São as viagens e os hotéis que o cansam ou subir ao palco todos os dias para interpretar as canções da noite anterior?

R – É o ar condicionado dos aviões que me dão cabo da voz... [risos]. Nos anos 70 viajar de avião era um acto de “glamour”. Hoje é simplesmente desumano. Mas gosto de hotéis. Do anonimato dos hotéis. É muito interessante, todos os dias mudar de espaço. Adaptarmo-nos a cada país, principalmente se estiver em cidades como Viena, onde há história, mistério e romance.

P – Para além das digressões tem actuado em eventos de carácter meio privado. Em Portugal já cantou em casinos.

R – É verdade. Acabei a passagem de ano a cantar na Áustria e no dia anterior estive em Banguecoque. É maravilhoso a forma rápida como hoje nos deslocamos. Gosto desses espectáculos porque actuo para pessoas que imaginam nunca mais me ir ver ao vivo. É a sua última oportunidade, idealizam, e por isso há muito afecto, o que é óptimo. Para além, claro, de ajudar a pagar as minhas contas e dos que trabalham comigo. Sei que há pessoas que não compreendem porque faço esse tipo de “shows”, mas paciência. De vez em quando sabe bem arriscar a credibilidade.

P – Aqui criticaram-no por ser o rosto da nova campanha da Marks & Spencer. Também arriscou a credibilidade.

R – Sim, mas que posso fazer? Não existe nenhuma incompatibilidade. Não tenho qualquer medo do comércio de massas. No princípio, os Roxy Music eram um pouco marginais, mas queríamos chegar ao máximo de pessoas. Estou num período em que quero desfrutar ao máximo. Há tempo para dúvidas, interrogações, e outro para usufruir. Neste momento, estou aí. Perdi totalmente o medo de desfrutar a vida como quero.

P – Apesar de ser um projecto do qual fala desde os anos 70, com o álbum de versões de Bob Dylan, também arrisca um pouco da sua credibilidade. Há pessoas que provavelmente esperariam um disco de originais. Porque este disco, agora?

R – Porque não? Quando fiz o primeiro álbum de versões não fui compreendido. Perda de tempo, diziam. O contexto agora é diferente. Há mais abertura. Quando lancei “As Time Goes By” em 1999 diverti-me muito. Este tipo de projecto permite-o.

P – Mas as versões são mais fáceis de criar do que originais.

R – Em geral, é verdade. Em particular, para mim, é uma verdadeira tortura... [risos]. O processo de escrita é sempre muito demorado e doloroso para mim. Está a sê-lo, agora, com os Roxy Music. É como tudo, quando se deixa de praticar, custa mais. Mas o facto de ser um álbum de versões não o diminuiu. É apenas uma outra forma de ser criativo. Estava impaciente para lançar um novo disco e sentia que a minha audiência também. Tinha este projecto desde os anos 70 e depois de ter terminado a digressão com os Roxy [Music], tirei uma semana, em estúdio, com a banda, só para ver o que acontecia. E foi maravilhoso! Foi catártico! Foi bom para a minha confiança. Às vezes é necessário fazer as coisas de forma intuitiva sem pensar muito nelas.

P – Que critério presidiu à escolha das canções? 

R – Nenhum em particular. Ou por outra, são tudo canções pelas quais nutro um grande afecto. O critério foi esse. São canções que estão na minha cabeça há muitos anos. Músicas com grandes letras. Quando se é cantor quer-se grandes letras para cantar e Bob Dylan é o mais poético dos escritores de canções do séc. XX. Principalmente os álbuns onde desenvolve uma relação de afeição com a linguagem. Onde se envolve, de forma afectiva e divertida, com a linguagem, criando imagens surreais, muito criativas.

P – São apenas as palavras que o atraem em Bob Dylan? A música, a personagem, o mito, não o aliciam?

R – Menos. A música agrada-me, mas as letras são um mundo.

P – Não o conhece, mas imagina-o. Que imagem guarda dele? 

R – Temos um amigo em comum – Dave Stewart [dos Eurythmics]. Ele fala, por vezes, dele. É o mais próximo que já estive dele. Não tenho muitos amigos na música. Mas imagino que tenhamos algumas semelhanças. Parece-me uma pessoa reservada, tranquila. Não é muito de aparecer nos “media”. Quando ele era novo vivia no Minnesota e imagino que tenhamos ouvido o mesmo tipo de música quando crescíamos – blues.

P – Nunca teve curiosidade em saber a opinião dele?

R – Não, não sou masoquista...[risos].  Não tenho muito desejo de o conhecer. Talvez com medo de me desiludir, não sei.

P – Dylan é também muito conhecido pelas canções de protesto. Revê-se nessa sua dimensão?

R – Não. Não gosto de política misturada com arte.

P – Mas seleccionou “The times they are a-changin’”, uma das suas canções políticas mais emblemáticas.

R – É política, mas com uma carga intemporal abstracta. A motivação pode ter sido a guerra do Vietname – ou outra – mas tem uma força genérica e pode ser abordada de formas distintas.

P – A maior parte das canções são da primeira fase de Dylan e arriscou ao incluir duas das suas canções mais conhecidas – “Knocking’ on heavens door” e “All along the watchtower”.

R – São canções com história e codificadas e, nesse sentido, é um risco incluí-las até porque já foram alvo de muitas abordagens. Não sou o único a gostar de Dylan. Os Byrds, Jimi Hendrix e tantos outros também o fizeram e de maneiras muito diferentes.

P – Em termos sonoros, algumas versões aproximam-se do registo balada, mas a maior parte possui uma intensidade muito rock, o que não deixa de ser um pouco surpreendente. 

R – Acho que tem a ver com essa variedade na obra do Dylan, precisamente. Quis que essa diversidade fosse bem vincada. Algumas canções são muito misteriosas e quis que os ambientes o reflectissem, mas na maior das vezes o que sobressai é uma banda a tocar com muito prazer. Há muito tempo que não tinha tanto gozo em estar em grupo. Os meus dois filhos mais novos gostam muito dessas canções mais intensas, o que significa energia.

P – É curioso dizer que gostou muito dessa vibração colectiva porque há anos – ainda antes do regresso dos Roxy Music em 2001 – dizia que a criação solitária era bem mais interessante.

R – Mudei. É verdade. Durante anos, passei o tempo a dizer que não gostava de bandas. Queria apenas trabalhar com alguns técnicos, mas o regresso dos Roxy Music revelou-se muito saudável e gosto muito desta banda. Há uma grande mistura de gerações. O [guitarrista] Chris Spedding deve ter 60 anos, mas o [guitarrista] Alan Thompson tem 18, e entendem-se muito bem.

P – O que é que eles lhe fizeram perceber?

R – Que é possível trabalhar de forma directa e precisa. Não estava habituado. Não é engraçado? Vamos envelhecendo e aproximamo-nos, cada vez mais, da simplicidade. Foi um prazer. Uma boa mudança. Muitas vezes entrava no estúdio e deixava-me ir. Durante muitos anos sentia que tinha que ser eu a ter o controle da situação. Era eu que dizia o que se iria passar. Agora não aconteceu nada disso. Ia para o microfone e deixava-me submergir pelo grupo. Não me preocupei em estar um passo à frente. Fiquei lado a lado com eles e foi simplesmente magnífico.

P – Os Roxy Music reuniram-se há cinco anos e o primeiro álbum desde “Avalon” é esperado ainda este ano. É isso? 

R – Sim, mas não quer dizer que venha a acontecer. Ok, estou a brincar. O álbum continua a ser criado, mas não sei se vai sair este ano. Está a demorar mais do que o previsto por causa da composição e da escrita de canções. É um tormento, para mim.

P – Brian Eno está também envolvido na criação desse disco?

R – Um pouco. Trabalhou para ele dois dias. Sei que parece pouco, mas ele é muito rápido e compreendo perfeitamente que não queira estar em estúdio um ano com os Roxy Music.

P – Ele toca também numa das faixas do seu disco. Durante muitos anos criou-se a ideia que não se davam. Era mito?

R – Tivemos os nossos conflitos, mas éramos adolescentes. Agora não. Admiro-o muito. Curiosamente fez algumas manipulações sonoras na faixa mais pop do disco, “If not for you”.

P – Já viu a exposição dele, “Constellations (77 Million Paintings)”, que está neste momento em exibição aqui?

R – Não. A última coisa que vi dele – uma vídeo instalação – foi há muitos anos. Não tenho opinião formada sobre esse lado dele, não conheço. Ele também não fala nisso. É focado. Quando está a trabalhar em música, pensa naquilo. E fá-lo, rápido. As pessoas não sabem, mas ele é muito divertido. Eu sou mais sério.

P – Ainda pinta?

R – Não, mas é muito tentador reiniciar a pintar. Gosto muito de me envolver no design dos lançamentos, mas pintar deixou de ser opção. Mas as artes plásticas continuam a ser o meu mundo. Ontem estive na inauguração da retrospectiva da Tate Modern do Gilbert & George e, enquanto bebia um vinho maravilhoso, só pensava na quantidade de dinheiro que o mundo da arte envolve hoje em dia. É incrível! E Londres é o centro dessas agitações.

P – Investe em arte?

R – Não. Tenho algumas coisas, mas nada de especial.

P – Como é o seu dia a dia, quando não anda em digressão?

R – Normalmente vou ao estúdio, aqui em Londres, todos os dias. Tenho lá uma espécie de oficina, ou estúdio de arte, onde crio algumas coisas artísticas. É um sítio fantástico, uma espécie de fábrica industrial. Fico aí até às 19h ou 20h e depois vou para casa ou vou logo jantar fora. Janto em restaurantes todos os dias. Ao fim de semana tento ir para o campo, onde verdadeiramente tenho casa. É em Sussex, para Sul, a hora e meia de carro de Londres.

P – No passado, chegou a viver em Nova Iorque e Los Angeles. Nunca mais teve a tentação de sair de Londres?

R – Não. Londres é uma cidade prática. Foram circunstâncias excepcionais da minha vida que me fizeram sair. Hoje não sinto esse apelo, mas guardo excelentes memórias de Nova Iorque.

P – De Los Angeles é que não guarda grandes memórias.

R – É verdade, mas estive lá duas semanas a misturar este álbum e gostei, outra vez, de L.A. Pareceu-me uma cidade mais humanizada. É um bom local para visitar, mas não para estar. Pelo menos para mim. É uma cidade desenhada para o interior – para detrás das paredes das casas – e não virada para o exterior. E isso, passado algum tempo, torna-se desagradável. Hoje em dia gosto muito de Berlim. É o contrário de L.A., uma cidade exterior. Se não tivesse dois filhos que estão a crescer, não me importava de mudar. Mas também viajo muito. Não me queixo. O ano passado estive de férias em Portugal com os meus filhos.

P – Onde?

R – No Algarve, perto de Albufeira, no Carvoeiro. É uma pequena vila de pescadores – ou, pelo menos, já foi. A foto da capa de um dos meus discos foi lá tirada.

P – Sei que gosta de ténis e golfe. Joga nessas alturas?

R – Jogo ténis, muito, em todo o lado, e golfe, de vez em quando. Em Portugal, o golfe é muito bom. Têm excelentes campos.

P – Cresceu com a cultura rock, tem 61 anos. Tal como o público que cresceu a ouvi-lo está mais velho. No entanto ainda persiste esse mito que o rock é coisa para adolescentes. Há dificuldade em aceitar que a realidade mudou.

R – Sabe uma coisa? Está a falar com alguém que viu a primeira grande digressão do rock & roll, com o Bill Halley & His Comets. Ganhei um bilhete, numa competição de rádio, e fui ver o concerto com a minha irmã. Foi inesquecível! A audiência era só “teddy boys” e toda a gente em loucura. Foi a primeira digressão de um músico rock. Nessa altura, sim, era música para adolescentes. Agora não. É como o jazz ou os blues. Recordo-me, de, na adolescência, ouvir Duke Ellington e de pensar – estes tipos são velhos, mas que música fantástica! É isso que interessa.

P – Já pensou que a geração de políticos que está hoje no poder, tal como Blair, cresceu com o rock & roll?

R – É interessante, não é? Parece que Blair gosta muito dos Roxy Music. Qualquer dia ainda sou condecorado... [risos]. É interessante pensar como as audiências mudaram. Sim, definitivamente, as audiências mudaram muito. São uma estranha mistura. O ano passado vi Bob Dylan e aquilo era uma grande mistura de gerações. Acontece o mesmo comigo, creio. É bom.

P – Nos anos 70 os Roxy Music personificaram o chamado “glam rock”. Consegue perceber algumas influências desse período na actualidade?

R – O rock, aqui, em Inglaterra, nessa linha, não me interessa. Prefiro os Arcade Fire, que são absolutamente incríveis. Mas se quer saber, quem personifica o “glam” hoje em dia são os “rappers”, gente como Puff Daddy ou raparigas como Beyoncé e Rihanna. Os vídeos, o imaginário, é fantástico. Nunca fiz nenhum grande disco de dança – apesar das pessoas pularem quando ouvem nas discotecas “Let’s stick together” – e não me importava nada de trabalhar um dia com Dr Dre ou Timbaland. São muito bons a fazer temas, embora eu prefira sempre uma boa canção.

P – Para a maior parte das pessoas parece ser o modelo do “cool”, aquele que sabe estar sempre bem em todas as situações, mas como toda a gente já deve ter passado por momentos embaraçosos. Recorda-se de algum?

R – Não foi embaraçoso, mas foi divertido. Estava a tocar na Escócia, a meio dos anos 70, com os Roxy [Music], e estava previsto que interpretaria uma das canções, no princípio, de saia escocesa. O problema foi que o tipo do guarda-roupa esqueceu-se das minhas calças e acabei por fazer todo o concerto de saia.

*Texto publicado no jornal Público (Ipsílon) em 2007.

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