Depois da Tempestade, a Abundância: Bienal Walk&Talk
Foto: VB. Espaço Vaga
Era hora de almoço, em Ponta Delgada, sábado, e na Vaga, o espaço de artes e conhecimento da associação Anda&Fala, responsável também pela Bienal Walk&Talk, reinava uma saudável desordem. No interior, nos diversos espaços, deambulava-se entre instalações, filmes e um concerto rock dos locais Amemo, enquanto cá fora se aglomeravam pessoas à volta de uma mesa com comida, enquanto os corpos se distendiam, em pé, sentados ou deitados, ao sol.
Na véspera passara pelo arquipélago a tempestade giselle. Agora, debaixo da bandeira LGBTQIA+ ou da palestiniana, que o evento nunca foi de calar a sua voz sociopolítica mesmo em contextos adversos, era a hora de inaugurar mais um dos muitos momentos que compõem a 1ª Bienal de artes Walk&Talk (depois de mais de dez edições do festival com o mesmo nome), que começou a 25 de Setembro, e se prolonga até 30 de Novembro. Se tivesse que fixar os últimos dias da Bienal num só instante estava ali uma boa representação.
Novas gerações açorianas misturadas com artistas, curadores, investigadores e público anónimo, gente consolidada artisticamente e emergente, do resto de Portugal e muitos estrangeiros, num ambiente informal e estimulante, onde a estridência das guitarras não cala a conversa curiosa e horizontal, entre quem acabou de chegar da Bienal de São Paulo, ou de qualquer outro ponto capital das artes contemporâneas, e a ilha de São Miguel.
Minutos antes, a curadora Fatima Bintou Rassoul Sy – que assumiu, com Claire Shea, Jesse James e Liliana Coutinho, a curadoria colaborativa da Bienal – na apresentação das obras, reforçara o misto de calor, afeto, imaginação criativa, exigência e rigor que fora encontrar, enaltecendo também o luxuriante território e a gastronomia. Nesta 1ªedição o tema global é “Gestos de Abundância”, não no sentido do excesso, mas encarado como possibilidades regeneradoras coletivas, num tempo de impasses, violências e profundas desigualdades.
Passam o tempo a dizer-nos, numa visão sombria, que os caminhos são unívocos ou escassos. No Walk&Talk, sem falsas esperanças, tenta mostrar-se que, coletivamente, é possível pensar e ousar outras hipóteses, partindo das artes, ideias, relações. Na cerimónia de abertura, dias antes, Jesse James, disse que não há arrogância de se pensar que ali se vai mudar o mundo, mas no processo de pensar e agir coletivo, algo se transforma. A abundância é assim entendida como algo que revela potenciais ocultos sobre o coletivo, o indivíduo e o território.
“Sulphur Edges” da coreógrafa e performer Meg Stuart
De alguma maneira é isso que se tenta interrogar no interior da Vaga, com a instalação de madeira de Cian Dayrit, compondo paisagens de resistência e regeneração, as cenografias efémeras dos Revolve Collective e filmes de Catarina Gonçalves e Sónia Vaz Borges (com Filipa César e Mónica de Miranda). Fascinante é “Sulphur Edges” da coreógrafa e performer americana Meg Stuart, habituada a gestos interdisciplinares, que em mais de uma hora de filme experimental, propõe um objeto visual coreográfico com o território, resultante de uma residência com um grupo internacional de artistas (Pacap 8), que em gestos de improvisação em locais termais ou num hotel abandonado, interrogam limites físicos, emocionais, sociais.
Mas a mostra da Vaga é apenas um dos nove espaços da ilha onde estão distribuídas obras de uma Bienal com uma programação expandida, entre inaugurações, performances, concertos, conversas, rituais coletivos ou excursões, ativando diferentes dimensões do território. Dir-se-ia que, agora, o Walk&Talk, em versão Bienal, está ainda mais ambicioso, sem perder o risco e a vitalidade.
*Primeira de várias publicações sobre a Bienal