Walk&Talk: Recuperar a Potência de Palavras Gastas como ‘Empatia’
Foto: Instalação de Mae-Ling Lokko, por VB
Empoderar, incluir, partilhar, participar, cuidar, empatizar e por aí fora. Palavras gentis, utilizadas em muitos campos na última década, também nas artes em geral, e na arte contemporânea em particular. Instituições, festivais, bienais, galerias ou projetos, todos desejam ser associados a políticas de diversidade ou de responsabilidade social, muitas vezes sem uma prática que sustente essas narrativas.
Resultado: tornam-se asserções esvaziadas, não correspondendo muitas vezes a ações concretas ou a processos transformadores. Existe uma tendência para estetizar o cuidado, a vulnerabilidade e a coletividade, transformando-os em temas tocantes. Isso gera uma arte que discorre sobre o outro, mas não com o outro, ou incapaz de devolver poder real às comunidades envolvidas, reproduzindo exclusões subtis, ou estruturais, por mais boa vontade que possa existir por detrás de alguns gestos.
O problema não está nas palavras em si, mas na forma como são usadas sem questionamento, mero ornamento discursivo. Ao longo dos anos, no Walk&Talk, sente-se que existiu sempre um questionamento dessas noções. Existe o reconhecimento do poderio político, e também poético, de muitas dessas nomeações, mas em simultâneo, há disponibilidade para devolver contexto, complexidade e conflito, a palavras que de tão nomeadas parecem ter perdido matéria e substância.
Lembrei-me disso, absorvido na voz da açoriana Mariana de Medeiros, que tem realizado trabalhos na área artística, social e educativa, e que desenvolveu com o companheiro Frederico Garcia, e já agora com a filha recém-nascida de ambos, “Boca Cheia”, uma performance de uma simplicidade desarmante, que se podia ficar pelo exemplificativo, mas que – à semelhança de outros projetos da Bienal desde ano – consegue recuperar a potência de palavras como empatia, cuidar, partilhar.
Chega-se a São Vicente Ferreira, vindo de Ponta Delgada, no autocarro do festival, e Mariana de Medeiros espera-nos em frente à igreja quando o sino toca. Coloca-nos auscultadores nos ouvidos, dizendo para seguirmos a sua voz no áudioguia, que nos conduzirá até à quinta Vila Verde, que gere e habita com o companheiro Frederico.
Em primeiro lugar existe a sua voz: pausada, flutuante, intimista, mas mantendo distancia, revelando inúmeras histórias e reflexões que se cruzam em camadas – pessoais, da quinta, da família de Frederico, da vila, da ilha, do mundo – algures entre a ficção e a biografia, explorando a tradição oral, a história das transformações culturais do lugar, a agricultura, o ciclo da laranja, a paisagem e a gastronomia.
Anda-se pelos recantos da quinta, conduzidos pelo audioguia, num misto de memória e presente, com métodos tradicionais coabitando com novas práticas, incluindo a produção de cogumelos shiitake, terminando numa degustação oferecida, com sabores locais, como os cogumelos da quinta, numa jornada sensorial, onde uma certa ideia de arte emerge como mecanismo para discorrer sobre a existência.
A mesma atmosfera sentiu-se na estufa Boa Fruta – Plantação de Ananases, onde a arquiteta filipina-ganesa Mae-Ling Lokko, a viver nos EUA, conhecida pela prática artística inovadora com materiais biológicos, concebeu uma instalação têxtil com tingimentos naturais que traça as viagens globais do ananás desde o século XIX, explorando a sua ecologia e as ligações ocultas com outras plantas através da cor, interrogando sistemas de valor, biodiversidade e memória ambiental, prevendo-se que ao longo dos dois meses da Bienal as tonalidades dos muitos quadrados têxteis no espaço se irão alterar com a luz solar, num registo vivo de transformação.
No Walk&Talk a arte dialoga com a vida quotidiana, sem artifícios. Mercados, estufas, praças, portos ou bairros servem para o conhecimento se expandir. Por exemplo, no Mercado da Graça, em Ponta Delgada, onde Maria Emanuel Albergaria, que opera na interseção entre arte, educação e património, concebeu “Estado da Graça”, projeto com diversos vértices, com uma exposição que dá visibilidade às histórias e vitalidade do lugar, uma banca de propostas inspiradas no mercado, ou conversas e visitas, celebrando a terra, os produtos, e quem os cuida, criando interações horizontais entre todos, misto de escuta ativa, generosidade e disposição para agir.
Será isso, afinal, a empatia? Se assim for, ela está bem presente aqui. E isso faz a diferença. Uns apenas a nomeiam. Outros praticam-na. E mesmo os que já descreem dela, pela omnipresença e desvirtuamento, no Walk&Talk, voltam a acreditar nela.