Burial antecipou há 20 anos o vazio onde caímos  

Estávamos em Maio de 2005 quando aquilo foi editado. Um som sombrio, atmosferas inspiradas pelo dub mas já uma outra coisa, ritmos sincopados adquirindo novas formas, uma névoa no horizonte por entre fragmentos vocais. Era um EP de quatro temas de nome “South London Boroughs”, que foi por estes dias reeditado. O misterioso Burial apresentava-se. Foi há vinte anos.

 

Se existem alguns nomes definidores das duas últimas décadas no campo da música popular ele é um deles. Quando surgiu foi como se precipitasse o que aí viria: desalento, vazio, distopias. Entre 2006 e 2007 editou dois álbuns (“Burial” e “Untrue”) que continuam a ser das coisas mais estimulantes de sempre. Música predominantemente instrumental, evocadora, de ambientes acinzentados, com vozes que se diluíam sonicamente. Em 2008, a crise financeira global, de conjuntural, passou a estrutural, os impasses do capitalismo tornaram-se evidentes, e a desesperança tomou conta do mundo.

Mergulhar na sua música é, ao mesmo tempo, imergir em paisagens desoladas e numa sociedade de consumidores solitários, mas que, apesar dos contornos sombrios, é ainda possuída por horizonte. É como se conseguisse articular os altos e baixos da existência, evocando solidão, mas também pertença, configurados numa música onde o crepitar do vinil, as respirações, as pausas, e o ambientalismo digital, expõem delicadeza. Há qualquer coisa de fantasmagórico por aqui, como enunciava Mark Fisher, com ocasionais vozes, quase sempre impercetíveis, cortando com um ambiente denso e enevoado.

 

A sua música é de tal forma evocatória que aquilo que ouvimos é quase tão importante como aquilo que não está lá, escrevia na altura. O concreto é tão relevante como as suas sombras. Há um espaço em aberto, pronto para ser ocupado por imagens, memórias e projeções do ouvinte, por entre cadências rítmicas que se desenvolvem lentamente e frações vocais que se diluem por entre camadas de som provenientes de paragens remotas.

 

Muitas dessas construções têm ainda o formato canção. São canções, mas rodeadas de abstração. Em 2006, quando o álbum homónimo de estreia saiu, antecipava que, apesar da sua excelência, dificilmente seria reconhecido como disco síntese de uma época, como o haviam sido, por exemplo, “Timeless” de Goldie, “Debut” de Björk, “Blue Lines” dos Massive Attack ou “Dummy” dos Portishead, para falar sobre obras que num só gesto condensaram o passado das músicas urbanas, estimularam o presente e prenunciaram o futuro. O argumento era o de ser um álbum demasiado claustrofóbico. Estava enganado. A realidade ajudou.

 

O mundo tornou-se ainda mais angustiante e incerto a partir daí. Hoje, olhando para trás é inegável que a influência da música de Burial está em todo o lado, não só nos terrenos mais minoritários (de Andy Stott a Actress) como na música mais conotada com o centro do mercado (dos The xx a James Blake ou FKA Twigs), o que não deixa de ser espantoso, porque está longe de ser uma sonoridade facilmente inteligível e porque aquilo que alude, como se o “no future” do punk adquirisse uma forma palpável, não é fácil de integrar.  


 


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