Crise da habitação: há alturas em que não conseguimos ouvir

À boleia de um artigo de opinião publicado esta quarta-feira no The Guardian, assinado pelo investigador Agustin Cocola-Gant, sobre Lisboa, que se viria a tornar viral, muita gente disse que tinha de ser um jornal inglês a falar dos problemas de uma cidade que já foi atraente e acessível, para se tornar em poucos anos numa das mais inacessíveis da Europa, pelo menos para os locais.

Não faz nenhum sentido. Há muitos anos que têm vindo a sair artigos na imprensa internacional que dão conta da situação reportada nessa opinião, em simultâneo com aqueles que comunicam – em muito maior número, é verdade – que Portugal é uma maravilha, e que a cidade, a praia ou o pastel de nata, está em 1º lugar do top-não-sei-das-quantas. O mesmo acontece com o contexto português. Ao longo dos anos têm havido imensa informação e partilha de conhecimento.

Sei-o bem, porque fui acompanhando essa dinâmica nos últimos vinte e tal anos. Na alvorada dos anos 2000 as noções de “cidade criativa” interessaram-me. Foi o tempo em que a narrativa da criatividade, da cultura, da tecnologia, da atração de talento e de capital, como fator de desenvolvimento das cidades, vingou. Entrevistei nessa altura, Charles Landry, que cunhou essas noções no Reino Unido, e Richard Florida, este nos Estados Unidos, ambos ainda bastante ativos.

A partir de 2008, com a crise financeira global, todas essas atraentes noções foram sendo postas em causa, inclusive pelos próprios Landry, Florida e outros, que reconheceram falhas, até porque cidades como Barcelona, Berlim ou Amesterdão, transmitiam evidentes sinais de esgotamento. A atração de talento ou capital é algo positivo, se forem acautelados os efeitos perversos do mercado.

Quando António Costa chegou à Câmara de Lisboa adotou, de certa forma, algumas dessas noções (atração de turismo, talento, aposta em grandes eventos, regeneração urbana de algumas zonas, e por aí fora) que já estavam a ser postas em causa. Foi a altura do regozijo. Muitos portugueses encontravam-se em situação difícil, o turismo, e tudo à volta, constituiu a sua salvação.

O problema é que, em simultâneo, não foram acautelados os efeitos perversos – turistificação, gentrificação, a habitação como fonte de especulação e não como um direito. A meio do mandato de Costa já eram evidentes os sinais de esgotamento do modelo. Não faltaram avisos.

Em 2015 entrevistei o holandês Marc Glaudemans, especialista em turismo, que havia sido contratado pela própria CML para produzir um estudo e era taxativo: “A fronteira entre ser-se uma cidade de sucesso e vítima desse sucesso é ténue. Aqui ainda nada de estrutural parece ter sido posto em causa, mas é necessário antecipar desafios, para melhor serem geridos, porque eles acabarão por surgir.”

Ideias semelhantes saíram de dois estudos produzidos por equipas lideradas pelo sociólogo Pedro Costa. E nos últimos dez ou mais anos inúmeros têm sido os artigos, reportagens, textos de opinião, palestras ou debates que dão conta de uma situação que se degradou rapidamente. Tiago Mota Saraiva, João Seixas, José Carlos Mota, e muitos outros nomes, têm tido intervenções públicas, ou escrito artigos, desde há muitos anos a esta parte, que vão nessa mesma direção.

Eu próprio, em 2015, escrevia: “Em quatro anos aquilo que era sucesso e orgulho é agora problema. A mudança foi brusca. Se antes só se entreviam fatores positivos, como as receitas e a requalificação de algumas zonas, agora são os negativos que toldam todas as visões, com a diminuição da qualidade da vida local.” A verdade é que ninguém quis saber dos sinais e avisos. E hoje aquilo que eram os sintomas de Lisboa, disseminaram-se para o resto do país.

Costa seguiu um modelo que foi replicado por Medina, apesar das tentativas de amenização no final de mandato, e agora, também por Moedas, sendo que este conseguiu intensificar os equívocos de trás. Mas o problema fomos também nós. Alguns de nós, porque os grandes proprietários querem é especular, e os pequenos arranjaram uma boia de salvação, encolhendo por isso os ombros.

Os restantes, a maioria, viveram na impotência, despertando tarde.
Mas que não se diga que foi por falta de informação e conhecimento. Pode-se falar em disseminação exaustiva de narrativas de sucesso e até de propaganda para não serem corrigidos os equívocos, mas o que aconteceu até pode ter uma explicação mais simples.

Os processos psicoterapêuticos constituem um bom exemplo. Há alturas em que simplesmente não estamos preparados para ouvir. O especialista diz-nos coisas que até conseguimos racionalizar, mas não integrar. Estamos, de alguma forma, em negação. Até que um dia aquilo que ele sempre disse é escutado pelo paciente como se fosse a primeira vez. O que era antes apenas tangível, é integrado e ganha sentido. É aí que começa a verdadeira possibilidade de transformação. É um processo. Vamos a ver, no caso da habitação, o que é possível ainda transformar. É urgente fazê-lo.

(Este fim-de-semana em várias cidades vai sair-se à rua, numa manifestação convocada pela plataforma Casa para Viver. Em Lisboa, é este sábado, às 15h30, na praça Luís de Camões. No Porto, é domingo, às 14h30, na praça da Batalha.)

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