Música que Ouvi nos Primeiros Seis Meses do Ano e Ainda Não Esqueci

Quilos e quilos de música. Ou gigas, mais exatamente. Já vamos a meio do ano e muita coisa já aconteceu no universo da música popular. Por exemplo, constatar que aquele que foi o álbum que mais buliu comigo o ano passado – “Racodja” dos Fidju Kitxora – foi agora editado em formato físico (vinil) e tem sido exposto ao vivo de forma admirável. Na atualidade não existe por aí muita gente capaz de mostrar música ao vivo com a mesma vitalidade e urgência.


Do mesmo quadrante há um novo álbum (“Griots i Riots”) pelo sempre estimulante Scúru Fitchádu e também o surpreendente “Bicicleta”, registo de estreia dos Collignon, ou seja, uma formação liderada pelo holandês-a-residir-em-Portugal Jori Collignon, em colaboração com três compatriotas, praticantes de um som instrumental singular, algures entre o balanço físico de Cabo Verde e alguns ambientes do Brasil, sobrevoando tudo com funk e muito psicadelismo.


Há semanas saiu “Clássico” de DJ Bebedera, pela Príncipe, e é magnífico. O ritmo insinuante do tarraxo não perde as propriedades erotizantes, ganhando um sentido menos padronizado, com uma panóplia de camadas e sons aventurosos. Uma música mais sensual do que sexual, que o ano passado já tinha conhecido um capítulo aventuroso com “Sai do Coração” de Nuno Beats.

Também na Príncipe, saiu “Diferenciado” de DJ Narciso, jornada por configurações rítmicas nada óbvias, oblíquas e inesperadas, por vezes longe da pista de dança, experimentando-se e divertindo-se com os elementos que tem à mão, mas sem nunca perder o balanço e o equilíbrio.


Para propriedades vitaminadas com espírito de rock que também se dança, com ruído, industrialismo, fisicalidade, suor e amor à mistura, haverá de contar com “Pirouette”, nova aventura dos nova-iorquinos Model/Actriz, misto de desejo em bruto com vulnerabilidade localizada, naquela que é hoje uma das formações mais revitalizantes para se viver em palco.

Rock, mas com sentido dramático, experimentação e modelos nada óbvios, é aquilo que os chilenos Hesse Kassel oferecem na estreia com “La Brea”. Na linha dos últimos Black Midi ou Black Country New Road, mas com mais urgência. Estes últimos regressaram este ano com “Forever Howlong”, um bom disco, mas que não chega a suplantar o que está para trás.


O mesmo se poderia dizer de outros regressos como os These New Puritans de “Crooked Wing”, ou dos quase sempre brilhantes Dirty Projectors, com “Songs of the Earth”. Os Stereolab também voltaram com “Instant Holograms of Metal Film” e a sua pop caleidoscópica e psicadélica, com espírito, retro-futurista, paradoxalmente, aguenta-se bem no presente.

 

Caso singular é o dos Moin, um daqueles eventos de culto que parece não crescer, mas cuja influência sobre alguma música atual (Mandy Indiana, Still House Plants, YHWH Nailgun) é percetível, praticando uma música difícil de classificar, que habita um corpo que é várias coisas e a sua desconstrução em simultâneo, rock-não-rock, guitarras em estruturas de dança ou de jazz. Música urgente, ruidosa, mas ao mesmo tempo de balanço rítmico insinuante, como em “Belly Up”, familiar no gesto, experimental na estrutura, à beira do grito, mas em tensão, contida.


Quem raramente desilude é o canadiano Dan Bejar, ou seja, Destroyer, que em “Dan’s Boogie”, volta a compor canções pop de complexidade interior de alcance universal. Da norueguesa Jenny Hval já estamos habituados a excelentes lançamentos, mas ainda assim, “Iris Silver Mist”, o seu nono registo, pareceu ter passado algo despercebido, o que não se compreende, porque se trata de obra magnífica, poesia digital, evanescente e perfumada na forma de canções imaginativas.


Algures, nas nuvens, também se situa a irlandesa Maria Somerville do álbum “Luster”, não por acaso lançado na 4AD, a lembrar os tempos que deram identidade à editora inglesa, quando ali despontaram Cocteau Twins ou This Mortal Coil. O que é interessante no seu caso é que tudo é feito sem esforço, com uma pop sonhadora a evocar paisagens a perder de vista.


E o que dizer de Felix Manuel, o DJ e produtor mais conhecido como Djrum? A sua música é feita de inúmeros e muito diversos estímulos (do piano clássico à electrónica mais vertiginosa) e, no entanto, o todo resulta líquido, fluído, subtil e poético, no seu terceiro álbum, “Under Tangled Silence”.


Para desacelerar e respirar, com jazz-não-exatamente-jazz, existe o álbum “Defiant Life” do pianista e compositor Viajay Iyver e do trompetista Wadada Leo Smith. Para ouvir em lugar doméstico eis o alemão DJ Koze com “Music Can Ear Us”, com ritmos distendidos e envolvimento soul-funk, embora toda a gente o conheça como capaz da adrenalina e fixação física dançante.


Disco assumidamente esquizofrénico é “Remember This Body?” de Cleyra, entre a pulsação tecno enérgica e a definição de atmosferas etéreas. Para quem gosta de eletrónica dançante guiada por voz e presença feminina, com preocupações sociopolíticas, o álbum a consultar é “City of Clowns” de Marie Davidson, enquanto em “Hexed!”, a britânica Aya propõe um tecno fraturado, sombrio, cru e ruidoso, que parece um disco de estimulante terror.

 

Já no hip-hop o nome de que se fala é o de Billy Woods, mas no campo das abordagens introspetivas e sofisticadas do género opto por “Did You Enjoy Time Here?” de PremRock, que conta com participações como a de Woods ou Pink Siif, para a composição de narrativas cativantes e complexas e batidas envolventes.


Para territórios de confluência entre rap, soul,  R&B e abstração eletrónica, a inglesa John Glacier com “Like a Ribbon”, não tem tido rivais à altura, embora FKA Twigs com “Eusexua”, numa ritualização da dança enquanto fator de transformação, ande por perto. Se nesse álbum Twigs recuperou a veia experimentalista, em “In The Blue Light”, Kelela, readquiriu a sua veia mais clássica, com interpretações soul soberbas.


Caso mais bicudo é o de “Lotus” de Little Simz, porque as expetativas estão sempre em alta. Desta vez existe uma fusão de hip-hop, jazz, pós-punk e funk, emocionalmente poderoso, mas a que falta aquela dose de alento suplementar de outras alturas, e o toque de unidade na diversidade que o produtor Inflo (Sault) garantia. Mau disco? Nada disso. Mas algo hesitante. 

Para uma dose de alento nada como ouvir “O Mundo dá Voltas” dos brasileiros Baiana System, mistura consistente de ritmo e poesia, com hip-hop, dub, axé ou pagode, e uma boa dose de convidados – Gilberto Gil, Anitta, Emicida ou Dino d’ Santiago. Por aqui, A Garota Não, lançou “Ferry Gold”, e tal como no anterior álbum, as vivências e experiências servem para pensar o nosso mundo coletivo, agora com roupagens sonoras mais diversas. Já Tó Trips continua a tocar a guitarra com engenho e emoção, rodeando os acordes com tempo, espaço e motivos trazidos pelos Fake Latinos em “Dissidente”, enquanto Malva em “Poros” precisa de pouco (uma voz, guitarra acústica e algumas circunferências sonoras) para comunicar lirismo e poesia.  


Alex FX deu a conhecer a banda-sonora para “A Paixão de Joana D’ Arc” (1929), de Carl Dreyer, com marcações rítmicas eletrónicas, motivos orquestrais, notas de piano e climas abstratos, instituindo um ambiente repleto de gravidade emocional.


No centro do centro do mercado nada de muito palpitante a acontecer, embora os Pulp tenham retornado com um disco consistente. Antes já tinha havido Blur. E adiante estão os Oasis. Os 90’s, claro, para o melhor e o pior. E depois existe “Debi Tirar Más Fotos” de Bad Bunny. Algumas boas ideias, música demasiado genérica, muita sacarina, mas há que reconhecê-lo, algumas canções são de apelo fatal.

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