Emergência Habitacional

Foto: VB

Este sábado, Espanha vai sair à rua exigindo a baixa dos preços de arrendamento e compra da habitação, e medidas para recuperar casas vazias ou turísticas. Quem tem acompanhado nos últimos vinte anos a questão em Espanha sabe que ali estão muito à frente, em relação a Portugal, no que toca a tentar enfrentar o problema.

A turisficação de cidades como Barcelona, Madrid ou Valência começou muitos anos antes de Lisboa ou Porto e a progressiva especulação por todos os territórios também. Não só o problema em Portugal é muito mais grave, porque a almofada estrutural e os rendimentos e salários são mais baixos, com rendas e subidas de preços em espiral, como as medidas que hoje são discutidas no espaço público para aliviar a situação já quase todas foram implementadas ao lado, pedindo-se mais.

É verdade que algumas das medidas adotadas em Espanha (limitação do preço das rendas, aumento da taxação e limitação de aquisição sobre casas de não-residentes e alojamento local, aposta na construção de habitação pública, incentivos fiscais a proprietários para reabilitação, programa para casas vazias, etc) não foi adotada por todas as regiões e, noutros casos, ainda é cedo para tirar conclusões, mas o que importa aqui refletir é que aquilo que em Portugal consideramos “radical”, em Espanha já foi implementado, argumentando-se que se tem de ir mais longe.

Este sábado grita-se em quarenta cidades. O próximo passo pode ser uma greve de inquilinos, de que já se fala há muito. É verdade que em Portugal, nos últimos anos, finalmente, o assunto foi chegando à rua, mas em comparação, a letargia ainda domina, como se constatou recentemente pela lei dos solos. Ou seja, o veneno identificado pelos espanhóis, ainda é visto aqui como sendo um dos remédios.

Lá já se percebeu que o problema da habitação é o mais central da última década na Europa, porque é aquele em que a crise do capitalismo neoliberal em putrefação mais se expressa, transformando aquilo que deveria ser um direito de todos, em motivo para especular de alguns.

Um dos vetores do problema é o turismo, um setor vital em Espanha e Portugal, que é motivo de conflito quando é monocultura, excesso, dependência. Há dias, uma amiga minha alemã, que vive há dez anos no centro de Lisboa, passando por um grupo de adolescentes, ouviu: “Oh! turista, desaparece daqui!” E lembrei-me de um dos muitos textos que escrevi sobre turismo e habitação, onde essa hostilidade já era prenunciada. Foi há doze anos. Na altura achava que Portugal estava a tempo de aprender com o que se passava em Espanha. Estava enganado.

*A Pressão Turística

No bairro de Lisboa onde vivo, o acentuado crescimento turístico dos últimos anos foi inicialmente sentido com regozijo e agora começa a ser encarado com preocupação. Nos cafés, nas esplanadas, na rua, enfim, no espaço público, as marcas de hostilidade entre autóctones e forasteiros ainda são subtis, mas não é preciso ter uma varinha mágica para vislumbrar que esses indícios irão aumentar. Isso vislumbra-se nas expressões de enfado. Nas incompreensões. Nas pequenas tensões.

A tentação de comparar Lisboa ou Porto com Barcelona é enorme, apesar de constituírem processos diferentes. A cidade espanhola transfigurou-se depois dos Jogos Olímpicos de 1992 e na década de 2000 converteu-se numa das cidades mais desejáveis da Europa, depois de desencadeadas uma série de estratégias de afirmação global. Hoje já não se percebe se é ainda uma cidade sedutora ou se se tornou vítima desse apetite insaciável.

É talvez a cidade que conheço onde a tensão entre nativos e visitantes se foi tornando mais visível. Os sinais estão espalhados pelo quotidiano. Há um mês assisti a uma dessas cenas. Numas escadas rolantes, um casal, lado a lado, conversando entre si. Atrás deles uma forasteira tentava passar, em vão. Comentário de um dos membros do casal: é turista, que espere!

Muitas cidades vivem hoje nessa encruzilhada entre resistir ao turismo massificado ou reinventá-lo – como agora se costuma dizer – de forma sustentável, embora ninguém saiba muito bem como é que isso se faz.

É o entendimento da própria cidade que está em causa. Ou seja, a solução para enfrentar a invasão do turismo massivo contemporâneo não é cair na confrontação ou na estigmatização de grupos flutuantes de cidadãos a partir dessa ideia de pertencerem ou não a um lugar, embora se deva ter em atenção o impacto dessas multidões oscilantes sobre os bairros.

Em muitas cidades os conflitos da invasão turística são hoje bem reais. Reflectem-se na especulação imobiliária. Na depredação de recursos localizados. Na perda de capacidade de decisão politica em como usar espaços. E resulta nessa noção de que o caracter “autêntico” dos lugares se vai dissipando, embora essa suposta autenticidade seja sempre partilhada, mediada, impura.

Uma coisa é certa. O turismo é uma forma de consumo. Contem inevitavelmente aspectos vorazes. A única forma de não ser destrutivo é ser limitado quantitativamente. É quase impossível que a vida urbana saudável não seja posta em causa pelo número excessivo de visitantes.

O que nos resta? Coexistir. Assumir que o espaço público é conflituoso e que não se pode fugir dele. Perceber que as tensões são inevitáveis e tentar geri-las o mais equilibradamente possível. Compreender a cidade como um todo. E reconstruir as nossas vontades políticas colectivas.

Por enquanto, tanto Lisboa como o Porto, existem na euforia do turismo bem-sucedido. Nada de essencial parece ainda ter sido posto em causa. Mas os sintomas de que os equilíbrios sempre precários podem dissipar-se estão aí. Em Espanha sabem-no bem. Vai ser preciso bom senso, uma cidadania atenta e vontade política para que não se transformem em cidades vítimas do seu êxito.

 

 

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