Underworld, Jeff Mills e Richie Hawtin: dos anos 90 à atualidade

Underworld

Nos anos 90, no festival Sónar de Barcelona, os nomes de Jeff Mills e Richie Hawtin (em nome próprio ou com o pseudónimo Plastikman) faziam invariavelmente parte do último dia do alinhamento do festival. Este fim-de-semana, agora em Lisboa, na companhia dos Underworld, são o destaque do evento. Os três nomes conseguiram ao longo dos anos manter uma atividade estimulante e diversa, com Mills e Hawtin, alternando o experimentalismo eletrónico, aplicado às mais diversas visões (arte, cinema, design, moda, arquitetura), ao mesmo tempo que percorrem o mundo com sessões DJ ou atuações ao vivo, onde predomina o tecno mais urgente.

Entrevistei-os a ambos nos idos dos 90. Infelizmente, a conversa com Mills não a encontro, mas recordo-me bem da impressão que me causou. Organizado, polido, focado, com uma camisa e sapatos impecáveis a brilhar, no Algarve, por entre turistas de chinelo, calções e t-shirt. O contraste absoluto com as suas sessões tecno catárticas, onde continua a pôr os corpos a transpirar e em perfeito delírio. De Hawtin – que vive irregularmente em Portugal de há uns anos a esta parte – a impressão é algo semelhante. Há poucos anos voltei a entrevistá-lo e a sensação manteve-se: é alguém que continua atento ao que se passa artisticamente e tecnologicamente. Não ficaram congelados no tempo, integrando com naturalidade o que de melhor ficou do passado, para melhor entenderem e arquitetarem o presente.

O mesmo se poderia dizer dos Underworld, também eles sobreviventes com naturalidade. E não era líquido que o conseguissem, porque para trás existiram cisões, dependências e estrelato repentino. Mas eles aí estão, continuando a lançar álbuns com periodicidade e qualidade, trinta anos depois do sucesso planetário de “Born Slippy” e de terem atuado pela primeira vez em Portugal, em 1995, no Rocks, em Gaia. Em 2019, na última entrevista que realizei a Karl Hyde, este ainda se lembrava dessa noite, tal como em 1997, quando o entrevistei pela primeira vez. Reproduzo algumas das declarações dessa primeira entrevista e da primeira, em 1999, com Richie Hawtin.  A primeira foi para o Blitz. A segunda para o Público, suplemento Sons.


*Underworld (Karl Hyde)


“Esta música cresceu consideravelmente nos últimos três anos. Os americanos sempre tiveram muito boa música de dança, desde os anos 70 no período ‘disco’ e, mais tarde, com house, o tecno ou o hip-hop. O que me parece é que antes as massas não tinham grande consciência desta música e isso, hoje em dia, já não acontece e toda gente quer andar a par do que se passa. Mas, não é só nos Estados Unidos, esta música cresceu consideravelmente em todo o lado nos últimos anos.”

Houve um momento, depois de todo o barulho por causa de «Born Slippy», em que decidimos que era importante acabar com toda aquela loucura e voltar a ter o controle das nossas vidas enquanto indivíduos. Nós não estamos interessados em sermos caricaturas de nós próprios. O público é inteligente e se uma banda como nós cair nesse tipo de tentação, manda-nos para o lixo. Somos pessoas equilibradas, que gostam daquilo que fazem, mas não estão dispostas a pagar um preço qualquer por esse facto.”

“É muito importante teres uma vida diversificada, porque isso ajuda-te a atribuir um significado à vida e a relativizares aquilo que te rodeia. Por outro lado, é importante, quando se faz parte de um grupo – de música ou outro qualquer – contribuir com experiências únicas e pessoais. É isso que ajuda o grupo a crescer e a ganhar um sentido que é pelos seus membros compreendido. É esse processo que nos permite realizar mutações sem que percamos nunca o necessário equilíbrio. Depois de todo o barulho por causa de «Born Slippy» chegámos a um momento de grande saturação e tivemos que nos separar. O Darren andou por aí a actuar como DJ e eu andei envolvido numa série de projectos multimédia da Tomato e isso acabou por ser muito bom porque quando nos voltámos a juntar para gravar este álbum estávamos outra vez com vontade de trabalhar, de forma criativa, juntos.”

“Antigamente escrevia muito há noite, mas nos últimos anos a maior parte das letras foram escritas de dia, em cafés, em digressão, em casa de amigos. Eu acredito que todas as pessoas vêm o mundo a partir de uma série de fragmentos – sons, cheiros, cores ou sabores -- e todas essas coisas se conjugam em pensamentos, memórias ou ideias. O nosso mundo é feito dessa série de fragmentos que nos dizem quem nós somos e o meu ponto de partida é escrever a partir da forma como nós experienciamos o mundo, a forma como o vimos. É isso que eu faço: oiço conversas, vejo coisas a acontecer simultaneamente, oiço barulhos, penso em coisas e escrevo tudo. Quando estamos a fazer um tema, se eu estiver realmente inspirado pela música, será ela que me dirá o que fazer. Será ela a dizer-me que tipo de vibração e de performance necessita. Então, abro o meu livro numa página que me pareça interessante e começo a cantar. Ás vezes, resulta à primeira, outras vezes o Rick trabalha a faixa semanas e semanas, alterando uma série de coisas. O que é curioso é que nunca falamos sobre qual era a minha intenção inicial, apenas nos deixamos ir imersos na pureza do som.”

“Foi uma noite agradável essa, no Rocks, apesar dos problemas técnicos que tivemos, por causa da energia eléctrica ou coisa do género. As pessoas foram adoráveis e foi uma experiência interessante para nós, porque toda a gente nessa altura dizia que devíamos actuar em espaços grandes. Quando se vai a um país que nunca se visitou, tão próximo do nosso, como é o caso de Portugal, é sempre um choque, porque nos interrogamos sempre porque é que nunca lá havíamos ido antes. Temos que regressar um dia destes.”

“A dificuldade para uma banda como nós é que gostamos realmente de fazer discos e queremos tocar para as pessoas, mas não gostamos da fama. Tenho sorte em viver numa parte do mundo muito sossegada, numa pequena vila chamada Romford, onde as pessoas ainda me tratam como o vizinho que arranja as flores do jardim (risos). Não temos planos para ser estrelas.”


*Richie Hawtin


“É natural que depois de mais de dez anos a fazer música electrónica, muitas pessoas repitam as mesmas ideias. No princípio era mais fácil ser-se original porque estava tudo por descobrir, depois a vertente técnica transformou-se na grande obsessão – como fazer o quê e de que forma? Hoje em dia, ao lado das evoluções técnicas que permitem que cada um faça música de maneiras diferentes existe outra vez uma atenção em relação à vertente estética. A verdade é que continua quase tudo por fazer no campo da música electrónica. Enquanto outras artes, como o cinema ou as artes plásticas, já realizaram uma reflexão interior sobre os processos de criação, na música, em grande parte, essa reflexão ainda continua por fazer. Essa é uma das razões que explica o olhar pouco atractivo que muita gente lança sobre a música electrónica. Existe a ideia de que é música feita por computadores. Não é verdade: é música feita por pessoas que recorrem a diversas ferramentas, entre elas computadores”.

“No final dos anos 80 e princípio dos 90, existia uma grande energia em Detroit que foi canalizada para a concretização de novas ideias acerca da música electrónica. Desde esses tempos que Detroit funcionou como ponto de referência para o resto do mundo, mas a ‘mensagem’ foi de tal forma disseminada pelo resto do planeta que esta música já não pertence a nenhuma cidade ou país. Recordo-me que quando descobri esta música tive uma espécie de choque: tudo era novo, até a forma de a dançar. Entretanto foram-se criando alguns constrangimentos e talvez seja o momento ideal para reintroduzir o risco, o prazer de escutar e de imaginar o futuro. O álbum do Carl Craig é um dos meus discos preferidos deste ano. O Carl mistura referências do passado e do presente, imaginando aquilo que poderá ser o futuro”.

“Como em qualquer outra arte, a inspiração para fazer música surge da vida e da forma como cada qual a desfruta: as cores, os sons, os cheiros, as viagens, as paisagens, as pessoas, as zangas com a família, etc. A maior parte das pessoas parece achar que a única coisa que nos inspira são computadores e avanços tecnológicos. É evidente que esse tipo de coisas é importante porque a música electrónica é provavelmente o género musical que mais acompanha e reflecte os avanços da tecnologia, mas os computadores não funcionam sem vida. A minha música reflecte o mundo contemporâneo e, por reflexo, a minha vida e o meu olhar sobre esse mesmo universo”.

“Não existe contradição nenhuma entre experimentar e tentar arquitectar novas sonoridades durante o dia em estúdio e, à noite, apresentá-las para um público que quer apenas dançar. A ideia de que tudo o que é dançável é fácil é um preconceito. Por outro lado, existe uma relação física com a música que não é a mesma para todas as pessoas. Dançar é uma forma de expressão e é interessante perceber as diversas interpretações que atribuem à tua música. Quando faço música limito-me a apresentar propostas novas, independentemente de ela poder ser ouvida nas pistas ou não. A música não é boa ou má, apenas por ser arquitectada para um determinado ambiente.”

“Num futuro próximo penso incorporar elementos visuais nas minhas performances. Nunca tentei fazer instalações, escultura ou pintura, mas por outro lado, estou cada vez mais interessado em alguma arte contemporânea. Esculpir o som e pintar com frequências é igualmente estimulante e penso que existem pontos de contacto entre estas diversas artes. Nos últimos anos tenho acompanhado com interesse a actividade de artistas de Nova Iorque como Barnett Newman ou Robert Reiner, mas em Inglaterra também existem artistas minimalistas interessantes como Anish Kapoor. De alguma forma, nos meus últimos álbuns ‘Consumed’ e ‘Concept 1‘ existe a mesma vontade de conciliar ritmos, materiais e tonalidades que são desconfortáveis. Gosto da sensualidade e da beleza misturadas com uma certa tensão brutal e vulgar”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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