Francisco Vidal e a urgência da arte como ato coletivo

Foto: VB

Está sempre a criar. É esse tipo de artista. Dir-se-ia precisar disso com voracidade. Não espanta que tenha duas exposições a decorrer neste momento. A 27 de Fevereiro (até 4 de Maio), estreou no Palácio Anjos, em Algés, onde iniciou os estudos de desenho e pintura, quando cresceu em Oeiras. E quinze dias depois, na última sexta, inaugurou “Escola Utópica de Lisboa“, Pavilhão Branco, com curadoria de Miguel von Hafe Pérez.


Há cinco anos, numa entrevista que lhe realizei, dizia-me que havia sempre muita gente que era convocada para as suas exposições, como se constituísse arte participativa ou comunitária, onde tanto funciona como impulsionador, como recetor criativo.

Entra-se no Pavilhão Branco e é nisso que se pensa. E não falo das muitas pessoas presentes na inauguração, ou do músico-performer Sílvio Rosado que o acompanhou para uma sessão de improviso para desenho e música, abrindo-se os dois ao inesperado, mas de a sua arte ser um ato relacional coletivo, marcada por ecos, desvios, filiações, referências, outros pintores, músicos ou escritores, vivos ou mortos, de Luandino Vieira a Maya Angelou, de Coltrane a Monk, mas também familiares, amigos, cúmplices e outros atores com quem intersecta ou gostava de se cruzar. Sendo que desta vez há o adicional de haver também desenhos de alunos, com quem partilhou saber, de Amares a Luanda.


Português, de ascendência cabo-verdiana e angolana, por via familiar, é uma personalidade artística difícil de situar. Há quem reconheça que a profusão de trabalho joga contra ele. Alega-se que se dispersa, carecendo de intencionalidade. E existe quem argumente que o seu corpo de trabalho é generoso, feito de gestos na tensão entre a pulsão e repetição, com uma unidade sedimentada numa relação física, suada e manual com o pintar, convocando a transmissão da memória, mas também o latejar do presente. Estes últimos, onde me enquadro, questionam porque não está hoje num outro patamar, porque a sua arte capta como poucas um momento de grandes transições.


Não é o tipo de artista que tenha as coisas totalmente arrumadas. Pode não ser claro nos desígnios, mas porque a realidade que lhe interessa está em construção, sem limites precisos. Nem sempre se adapta aos preceitos do meio artístico das aparências, mas é esse lado indomesticável que o desloca da norma, não seguindo posicionamentos apenas porque é o que é esperado dele, o que pode ter custos num meio pequeno e punitivo como o português.


Mas aquilo que as palavras nem sempre traduzem, os seus trabalhos fazem-no. Entra-se nas salas que compõem a exposição e, entre algumas obras do passado, e um corpo de trabalho atual, sente-se a urgência expressiva e a fulgurância táctil, onde todos os hibridismos são possíveis, em gestos impetuosos ou poéticos, expostos em pinturas cartográficas que nem sempre reproduzem algo existente, numa realidade paralela, polifonia de preto-e-branco, linguagens, geografias e histórias.


Há afeto e feridas em aberto, heranças e clarões de futuro, numa profusão de códigos e referências intersectadas, numa transbordante energia criadora que Vidal sabe não provir apenas de si, e que não quer só para si. A sua arte nasce desse devir, do desejo de movimento em relação com outros, sejam eles autores, criativos ou alunos, da rua ou da arte mais canónica, numa utopia em trânsito de múltiplos encadeamentos, onde ideias de reciprocidade estão sempre presentes. Até 8 de Junho, “Escola Utópica de Lisboa”.

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