O jardim da Primavera de David Hockney
David Hockney. Winter Timber (2009)
O inglês David Hockney, talvez o mais popular dos pintores contemporâneos, é objecto de uma grande e admirável retrospectiva no Pompidou de Paris, depois da Tate Britain de Londres e de no final do ano rumar a Nova Iorque, num trajecto onde uma luz vibrante ilumina as piscinas da Califórnia ou os campos do Yorkshire.
Entrava-se na Tate Britain de Londres em Abril e o ambiente era frenético, com magotes de pessoas em frente a quadros de enormes dimensões que reflectem os bosques verdejantes do Yorkshire. Em Junho no Pompidou de Paris, o azul incandescente das piscinas da Califórnia, era observado com o mesmo entusiasmo por gente de todo o mundo. E não custa acreditar que em Novembro, no museu de arte Metropolitan de Nova Iorque, acontecerá o mesmo com a mítica paisagem do Grand Canyon.
É a maior retrospectiva de David Hockney organizada em colaboração por três instituições. Depois de ter estado na Tate Britain, em Londres, entre Fevereiro e Maio, onde bateu todos os recordes de venda antecipada de bilhetes, inaugurou a 21 de Junho no Pompidou, em Paris, prologando-se até 23 de Outubro. E a 27 de Novembro – até Fevereiro de 2018 – estará patente no museu de arte Metropolitan de Nova Iorque. Aos 81 anos o sucesso acompanha-o. No Pompidou diante dos quadros de maior sedução, as pessoas tentam perceber o candor juvenil das obras do veterano artista, quase se acotovelando para garantir a melhor posição.
Na Tate uma mãe põe-se de cócaras com duas crianças, explicando-lhes talvez a longa relação do artista com novos formatos electrónicos, alicerçada na última série de obras criadas a partir de iPad. O mundo está havido por mergulhar na obra do artista a residir em Los Angeles e as explicações sucedem-se para tentar explicar o fenómeno. A exposição reflecte a carreira que atravessa seis décadas através de 160 trabalhos (a retrospectiva do Pompidou tem mais duas secções e dá maior ênfase às técnicas modernas de produção de imagem, mas no geral são análogas), entre pinturas, fotografias, gravuras, instalações vídeo, desenhos e materiais impressos), incluindo os trabalhos mais icónicos (piscinas, duplos retratos ou as paisagens monumentais) e as criações mais recentes.
Bigger trees near warter (2007)
De forma simples poder-se-ia dizer que este é o seu ano. Mas nos últimos tempos isso tem-se sucedido. Todos os anos, em Londres, existe uma grande exposição à volta da sua obra. O ano passado a Royal Academy apresentou uma série de 82 retratos e dois anos antes haviam sido as paisagens do Yorkshire a estar em evidência. Os ingleses não se saturam dele e desde que Lucian Freud morreu, e antes dele Francis Bacon, que o epíteto de maior pintor britânico em actividade nunca mais o abandonou.
O estatuto de artista popular não é de agora. O filme de Jack Hazan, A Bigger Splash de 1973, contribuiu para fazer dele quase uma figura mitológica, para além dos meios da pintura, e principalmente junto do público inglês é visto como alguém que incarna os valores da cultura britânica. Mas de maneira mais geral o seu êxito parece advir da singularidade, a forma como se reinventa com regularidade, arriscando novas técnicas de criação e afirmando uma arte que se deixa maravilhar pelo mundo numa atitude firmemente positiva. Há no seu labor uma grande versatilidade que acaba por se afirmar na libertação imensa da cor, sendo ao mesmo tempo económico e luxuriante. Como afirmava recentemente o curador da exposição do Pompidou, o francês Didier Ottinger, “é preciso recuar a Matisse, ou ao cinema de Jean Renoir, para encontrar o mesmo tipo de alegria e optimismo que exprime a sua arte.”
A sua personalidade também acaba por cativar. Nas inaugurações da Tate e do Pompidou afirmou que continua a trabalhar incansavelmente e que está focado no que haverá de vir, apesar da quase surdez, de já ter sofrido um derrame e de dizer que ao longo da vida não teve muita sorte com os assuntos do coração. “Há muita gente que pensa que sou um hedonista, mas olhando para trás sempre trabalhei. Trabalho todos os dias e nunca vou a festas”, disse ao The Guardian. Durante os quatro anos que a retrospectiva demorou a ser montada, entre constantes viagens entre Hollywood e a Europa, quem com ele privou encontrou alguém contente por rever a sua obra, mas preocupado em não submergir-se na nostalgia. “Espero que as pessoas retirem um pouco de alegria desta retrospectiva”, afirmou, “que desfrutem do mundo como eu desfruto, olhando-o.”
Objectivo cumprido. As retrospectivas da Tate e do Pompidou são um bálsamo para estes tempos conflituosos. A luz que emana da sua arte parece banhar não apenas a sucessão de salas das instituições, como os campos de Inglaterra, o bronzeado dos corpos dos amantes, os rebordos das piscinas ou as paredes geométricas das habitações de Los Angeles.
The arrival of spring (2020)
Mais do que uma rigorosa ordem cronológica das peças, a retrospectiva coloca em evidência as linhas mestras de uma obra rica em temáticas e técnicas. Os anos de estudante – da escola de artes em Bradford, onde nasceu, no seio de uma modesta família operária, até ao Royal College of Art de Londres – e as grandes influências estão em evidência nas primeiras salas. Aí temos as imagens da Inglaterra industrial, que testemunham o realismo social dos primeiros professores, até à assimilação do expressionismo abstracto – patente em quadros como We two boys together clinging (1961), onde a temática explícita é a homossexualidade, numa altura em que era considerado crime, com ele a assumir a transgressão numa série pinturas – ou a descoberta de Picasso, a partir da qual se capacita que um artista não deve limitar-se a um só estilo ou ideia.
Uma das salas, no Pompidou, é dedicada à Califórnia. Foi aí que, em Janeiro de 1964, iria aportar, fugindo do opressivo clima social inglês, sendo seduzido pela imagem de hedonismo e de tolerância, pelos espaços abertos, pelo culto do corpo, casas luxuosas com piscinas e pela luz branca. São dessa fase algumas das suas obras mais icónicas, banhadas pela claridade e intensidade do sol, com ele a criar imagens de grande precisão mas que ao mesmo tempo parecem imateriais, jogando com a luz e as cores fortes, malhas de linhas quebradas e curvas enlaçando-se, resultando daí obras sensuais, lascivas, amorosas e carnais.
Em Peter getting out of Nick’s pool (1966), o corpo desnudado do namorado da altura sai da água, com o reflexo do sol a formar padrões geométricos na superfície da piscina, enquanto em A bigger splash (1967), alguém se atira para a água provocando salpicos, numa espécie de ejaculação que rompe com o rigor geométrico da casa ou do trampolim. Em Portrait of an artist (Pool with two figures) (1972), é outra vez o “amor da sua vida”, como uma vez se referiu a Peter Schlesinger, que é aludido, à beira da piscina, contemplando a sua distorção aquática, num gesto de catarse, na altura em que a relação já se havia desintegrado.
Portrait of an artist (Pool with two figures) (1972)
A sua obra dessa fase tornou-se iconográfica das revoluções sexuais, económicas e estéticas de uma época. Na Califórnia encontrou a irreverência do lúdico, o gosto pleno dos sentidos, metáforas de uma existência disfrutada sem complexos, com os corpos bronzeados reflectindo um relaxado e pouco convencional estilo de vida. Claro que os seus detractores não lhe perdoam isso. Criticam aquilo que dizem ser um universo superficial que não reflecte os acontecimentos do século XX.
Faço quadros que pretendem significar algo para o maior número de pessoas, costuma responder, tendo argumentando em 1988 que a “ideia de fazer quadros para 25 pessoas do mundo da arte é uma loucura e é ridículo.” Afirma-o provocatoriamente mas não é plausível que tenha tido ao longo dos anos uma relação instrumental com o mundo da arte, apesar de parecer alguém muito consciente do meio onde se insere. Isso é perceptível até na sua imagem trabalhada – os cabelos muito louros com os óculos grandes, redondos e grossos, com bonés, lenços ao pescoço e padrões riscados ou axadrezados – que parece ter sido inspirada no pai, originando um dandismo excêntrico mas familiar, mas fazendo lembrar também Warhol, na forma como construiu uma personagem pública.
O pai – um anti-fumador radical, contra o qual se rebelou, pois tem sempre um cigarro nos dedos – e a mãe são aliás retratados, o que não surpreende porque apenas pinta de quem se sente próximo. Os seus famosos retratos duplos de grande formato reflectem essa proximidade, com ele a transmitir-nos o seu olhar íntimo e singular sobre a banalidade quotidiana das coisas, pintando amigos da vida social californiana em poses informais (como o escritor Christopher Isherwood e o seu parceiro, Don Bachardy, um dos primeiros casais abertamente gays de Hollywood), porém representados com a seriedade dos retratos mais tradicionais.
Em Mr and Mrs Clark and Percy (1971) são os amigos Celia e Ossie Clark que são retratados e em em My parents (1977), o homem mundano de Hollywood volta a ser apenas filho, com as cores vibrantes a darem lugar a tons mais terrenos, sublinhando o olhar doce da mãe e a alheação do pai.
O regresso momentâneo às raízes no Yorkshire, e às paisagens pintadas ao ar livre, dar-se-ia ao longo dos anos por diversas vezes, alternando com a vida americana. Na Califórnia é seduzido pela explosão de cores em várias séries de pinturas de casas, estradas e canyons e na Inglaterra natal fascina-o a passagem do tempo e das estações com as suas variações de luz resultando daí obras contemplativas como Woldgate woods (2006).
Mas a passagem do tempo é ainda mais intensa numa das últimas secções com a monumental instalação The four seasons (2010), uma única obra videográfica a encher as paredes da sala, reproduzindo a filmagem das quatro estações do ano nos bosques de Woldgate. No centro da sala o público mergulha com emoção nesta corrente durável, num silêncio religioso, como se estivesse a meditar no tempo perdido ou reencontrado, numa obra admirável que constituiu mais uma prova da sua curiosidade por tecnologias modernas de produção e reprodução de imagem.
Ele que foi pioneiro no uso da fotocópia e do fax para desenhar e, a partir de 2007, do Photoshop, mais recentemente tem recorrido ao iPhone e numa escala maior ao iPad. As novas técnicas e suportes sempre o excitaram. Não surpreende por isso que na penúltima sala a tecnologia para iPad e telemóveis seja utilizada para produzir e animar desenhos em movimento, embora o que sempre uniu as diferentes fases do seu percurso, linhas, cores e tempo, continuem claras. A coisa a representar pode ser a mesma, mas é possível faze-lo de maneira diferente, afirma.
Na última sala, dedicada a pinturas recentes, somos outra vez confrontados com um estampido de cores, representando a vitalidade botânica dos jardins californianos, como se quisesse reafirmar que, apesar da idade, é ainda o vigor da vida e uma simplicidade e variedade plena de sentido e de expressividade que o iluminam. Cá fora, estudantes de arte de óculos redondos, jovens exibindo o último modelo de ténis, casais de idade avançada ou recém-casados com bebés parecem todos sorrir depois de terem mergulhado numa obra que consegue ser transversal porque é exigente e comunicativa, exibe densidade conceitual e capacidade de atracção, expressando um imenso prazer de viver.
Texto originalmente publicado no jornal Público (Ipsílon) em Agosto de 2017