Paul Mason: “Estamos a viver um tempo de pesadelos e não nos devemos esquecer que é nas crises que o fascismo mais opera”
Hoje, mais do que em qualquer outro momento da história recente, expõe o inglês Paul Mason, a liberdade está ameaçada por totalitarismos. “É nas crises e nas guerras que o fascismo mais opera e se dissemina”, diz a propósito do livro “Como Travar o Fascismo”.
Há três anos, quando lançou o livro Um Futuro Livre e Radioso (2019, Objectiva), havíamo-nos encontrado num pequeno café italiano no coração de Londres. Agora, foi em sua casa que, por assim dizer, nos recebeu. “Por mais que utilize o Zoom e que esteja a olhar para outra pessoa no ecrã, parece-me sempre que estou a falar comigo próprio, o que é muito estranho. E o facto de estar aqui, em minha casa, a falar consigo, em vez de diminuir, ajuda a intensificar a sensação”, ri-se ele.
O britânico Paul Mason é um dos intelectuais, activistas e comentadores políticos mais participativos no espaço público em Inglaterra. Com um passado como jornalista e um presente como professor universitário e escritor, tem reflectido nos últimos anos em diversas obras, como Pós-Capitalismo: Guia para o Futuro (2016, Objectiva), sobre um tempo de grandes incertezas em que, segundo ele, é urgente reformar um sistema económico moribundo, com consequências nas desigualdades, na crise de confiança na democracia, no agudizar da emergência ambiental e no surgimento de populismos. Há três anos, já era perceptível que o seu foco seguinte de interesse poderia ser o fascismo. E agora aí está Como Travar o Fascismo — História, Ideologia, Resistência (2022, Objectiva).
“Existiram vários sinais ao longo dos últimos anos que me motivaram a escrever o livro”, afirma. “A radicalização no poder de Trump foi decisiva. Ele é um nacionalista neoliberal que mobiliza uma grande massa de racistas e misóginos, esvaziando a democracia e promovendo ligações com a extrema-direita. Embora ideólogos como Steve Bannon ou Roger Stone tenham sido condenados, conseguiram nos anos de poder de Trump arregimentar a sua base de apoio com muitos seguidores da extrema-direita. Não me surpreendeu que tivesse respondido à derrota eleitoral com a mobilização dessas pessoas. A invasão do Capitólio, se bem que fracassada, quis normalizar a insurreição armada como resposta à democracia liberal.” Mas não foi apenas Trump. Os EUA não foram o único país onde a nova extrema-direita investiu no direito à violência.
Paul Mason: “O fascismo moderno quer regressar a etno-estados ou a um mundo sem direitos iguais para mulheres, minorias raciais ou pessoas transgénero”
“Pessoas a carregar armas para atacar movimentos como o #BlackLivesMatter; multidões hindus em Deli espancando estudantes de esquerda; muçulmanos chineses encarcerados em prisões que mais parecem campos de concentração; uma unidade do Exército alemão dissolvida por infiltrações de neonazis; crescimento de partidos como o Vox em Espanha — enfim, novas formas de fascismo a irromper pelo mundo. Não há para já o desejo de tomada de poder. O fascismo moderno não quer isso por enquanto. Mas em vez de subestimarmos a ameaça, devíamos travá-la antes que seja tarde. A estratégia é ir mobilizando e provocando conflitualidades, pondo em causa a vontade popular. É normalizar o seu pensamento e radicalizar outras forças conservadoras a seu favor, sejam outros partidos, líderes autoritários, de Erdogan a Orbán, ou grupos como os antivacinas da pandemia. Os seus interesses estão representados em muitos lugares, minando a autoridade das instituições democráticas. E o padrão de Trump repete-se noutros quadrantes: na Índia com Modi; ou com Bolsonaro no Brasil, que, se perder as eleições, também não vai ser nada simples retirá-lo do poder.”
Segundo Mason, se os neonazis seguidores de Hitler viajassem no tempo, perceberiam que, hoje, muitas das suas ideias (pureza racial, supremacia masculina, adoração ao líder) estariam a circular globalmente no espaço digital. Os fascistas podem não estar no poder e muitos movimentos de extrema-direita ainda são pequenos, mas as suas ideias têm vindo a ser amplificadas e, principalmente, as linhas divisórias entre ideologia de extrema-direita e populismo de direita em partidos conservadores tornou-se ténue.
“Há uma espécie de sobreposição entre o populismo e autoritarismo de direita e o novo fascismo”, afirma. “Houve uma altura em que se pensou que os partidos democráticos de direita se iriam demarcar dos extremismos, caracterizados pelo racismo, pela agressividade e combate aberto à democracia, mas o que se tem visto não é isso.” Para combater o perigo ao virar da esquina, é, segundo ele, “necessária uma aliança alargada entre partidos de esquerda e do centro político. Se olharmos para a História, vemos que foi assim que o fascismo pôde ser retardado em alguns contextos e, noutros, derrotado”.
Durante o processo de pesquisa, leu muitos livros, viu documentários, tentou perceber em várias artes como o fascismo era representado e é da opinião de que muitas dessas visões não servem para perceber a realidade actual. “Há excepções, mas, no pós-guerra, existiu uma excessiva personalização — nas figuras de Hitler ou Mussolini — e um foco muito grande na forma como esses estados totalitários funcionavam, esquecendo-se muitas vezes os processos que nos conduziram até aí e o que fez as pessoas correr atrás de utopias tão irracionais. Há alguma dificuldade em compreender o poder do imaginário colectivo, criar um discurso que vá além dos factos e dos números, tocando no cerne da experiência humana. E talvez seja isso que mais nos interessa hoje.”
E como se explica a atracção pelo fascismo, em meados do século XX, ou hoje? “Medo da liberdade”, responde. “Há muitas pessoas que quando têm um vislumbre de liberdade, a temem. Para se ter liberdade, é preciso conquistá-la. É algo desejado, mas assustador, pelo esforço que requer e responsabilidade que atribui. É mais fácil de assimilar quando atribuída por alguém que vemos como soberano. É aceite enquanto liberdade, mas na verdade trata-se de subordinação. A mobilização advém daí, dessa reacção, desse medo, de um vislumbre de liberdade e de que a educação, os direitos, a modernidade, a inclusividade ou a igualdade, nos possam realmente libertar. Não é só o medo de outras pessoas serem livres. É medo da sua própria liberdade. O fascismo moderno quer reverter a modernidade, regressar a etno-estados ou a um mundo sem direitos iguais para mulheres, minorias raciais ou pessoas transgénero.”
Quando Paul Mason despertou para a luta antifascista, nos anos 1970, eram fáceis de identificar os pequenos grupos que professavam a ideologia. “Quando tinha 17 anos, combatia os pequenos grupos nacional-socialistas existentes em acontecimentos como Rock Against Fascism”, recorda. “Era um tempo em que eram fáceis de identificar. Hoje, o que enfrentamos é muito mais difuso. Enfrentamos um movimento que se reorganizou a partir das raízes filosóficas pré-1940, com alguns equivalentes modernos, como Renaud Camus ou Alexandr Dugin, a inspiração para algumas ideias de Putin. O que eles trouxeram para o mundo moderno foram novas formas de niilismo ultrarracista, ou seja, justificações de violência, sem referências explícitas ao nazismo. O fascismo está no meio de nós sem precisar de referentes explícitos.”
No livro, Paul Mason defende que o fascismo é um sintoma recorrente de falha do sistema no regime capitalista. Em tempos normais, o capitalismo apoia-se num sistema de crenças simultaneamente passivo e difuso. Para vivermos, temos de acreditar que os mercados funcionam de forma natural, que os governos são justos, que o trabalho árduo será recompensado, que a tecnologia nos ajudará e que a vida melhorará para nós e para os nossos descendentes. Essas crenças, em conjunto, formam uma ideologia, que reproduzimos. O fascismo ganha espaço quando a crença nessa ideologia se extingue e nenhuma alternativa válida aparece.
“Esse facto, o de habitarmos um modelo socioeconómico em putrefacção, no qual já ninguém verdadeiramente acredita — mesmo os que afirmam o contrário —, por si só, justifica muito do crescimento da extrema-direita. É verdade que não é factor único, ou isolado, mas é importante. Em livros anteriores, escrevi que o neoliberalismo estava a agonizar. Como modelo, já não funciona. Claro que subsiste porque a vida tem de continuar, mas a ideologia que o suporta já não faz sentido.”
Várias gerações adoptaram-no porque parecia que nada melhor seria possível. Tudo foi reduzido à economia. Mas é mais do que isso, segundo ele. “Até certo ponto, o neoliberalismo é uma espécie de visão holística do mundo que explica tudo, ao nível da intimidade, do trabalho, das relações. Por isso, quando a economia de livre mercado se desregula, não é só a economia que sucumbe, é a nossa visão do mundo também.”
Combater o fascismo significa viver em sociedades mais justas e igualitárias economicamente. “Isso é essencial, mas não chega”, diz Paul Mason . “É fundamental perceber que estamos sentados sobre um sistema moribundo, mas é preciso entender que não vivemos apenas numa economia, mas no seio de uma sociedade que tem de fazer sentido para a larga maioria de nós. A extrema-direita percebe muito bem esse tipo de procedimento. É por isso que reiteradamente traz consigo ideias de raça, de pureza, de masculinidade ou de etnonacionalismo.”
Ideias que têm sido ampliadas, não só, mas preferencialmente, nos ecossistemas digitais. Até determinada altura, a Internet parece ter sido uma ferramenta ao dispor de movimentos sociopolíticos de impacto global, como foram a Primavera Árabe ou Ocuppy Wall Street. Nos últimos anos, parecem ser as forças mais conservadoras que dominam a esfera digital.
“Eventualmente, esses acontecimentos entre 2010 e 2012 serviram precisamente para as forças antiprogressistas — fossem estatais ou informais — despertarem para uma realidade que até aí não haviam levado a sério. Literalmente, foi um tempo onde se tentou, sem sucesso, mandar a Internet abaixo. Terá sido a partir daí que pequenas células da extrema-direita viram oportunidade para se organizarem. A articulação em rede permitiu-lhes crescer e depois a sobreposição com populistas de direita serviu-lhes de câmara de eco — seja através de canais de TV, de plataformas como o Facebook, Google, YouTube ou TikTok, que fazem dinheiro através da desestabilização emocional — ao mesmo tempo que criavam desinformação em massa. A outra origem dessa desinformação provém de países como a Rússia e, até certo ponto, da China. E aqui estamos, num impasse. As democracias liberais não sabem bem o que fazer, enquanto os milionários dos media e da tecnologia, ou os russos, respondem que não podem ser os Estados a decidir o que é a verdade.”
A Rússia é continuamente evocada ao longo da conversa e é inevitável falar-se da guerra na Ucrânia. Na sua perspectiva, ao contrário do que a maior parte das análises tende a veicular, a posição da China não tem sido ambígua. “Não precisa de dizer grande coisa porque é hoje evidente que a Rússia e a China estão alinhadas na mesma visão. O que Putin e Xi Jinping dizem é: o totalitarismo é bom. Esqueçam os vossos ideais democráticos. Nós definiremos o que é democracia, o que são direitos humanos e também — a guerra na Ucrânia é sobre isso — as fronteiras entre nós e vós. Putin quer ter o direito de decidir onde termina o Ocidente e começa o novo estado totalitário russo, ao mesmo tempo que deseja uma ampla zona de amortecimento de estados neutros. O seu método é a barbárie. Putin e Xi Jinping não desejam valores universais, daí que sejam os aliados naturais da extrema-direita no Ocidente.”
Na véspera da nossa conversa, havia participado numa concentração junto à embaixada russa em Londres, organizada por ucranianos, quando às tantas apareceram, de forma imprevista, muitos jovens russos para se juntarem ao protesto. “Não estava previsto que acontecesse e isso faz-me pensar que, mesmo quando as pessoas são orientadas pelo medo e pelo terror, o instinto de liberdade está lá.”
Até pode acontecer que Putin venha a conhecer forte oposição interna num futuro próximo, mas para já o que se assiste é a uma divisão da esquerda europeia, que foi célere a condenar a invasão, mas na contextualização do conflito existem uma multiplicidade de teorias. Ou seja, a tal frente popular entre esquerda e centro que Paul Mason requer como essencial para travar totalitarismos parece hoje mais difícil de alcançar do que nunca. “Não tenho ilusões sobre as dificuldades de um bloco antifascista desse género. Um movimento cultural que congregue socialismo, comunismo, liberalismo ou movimentos como o feminismo. A questão é que, se não o soubermos criar, vamos ter muitos e sérios problemas pela frente.”
Existem vários conflitos dentro do conflito na Ucrânia. A resistência de um país contra a agressão de outro. A Ucrânia olhada como cenário militar onde decorre uma guerra geoestratégica entre Rússia, China e Estados Unidos e aliados europeus. E um conflito sistémico, sobre a sobrevivência do Ocidente como uma aliança de estados democráticos, onde existe uma ordem jurídica internacional reconhecida por todos.
“Existe uma parte da esquerda na Europa que ainda está nas políticas de austeridade. Acreditam que os maiores inimigos deste mundo são Christine Lagarde ou Ursula von der Leyen. As suas políticas são duras, mas o inimigo agora é Putin, Bolsonaro, Modi, Le Pen ou um futuro Trump. Nos EUA, o que levou Biden ao poder foi uma aliança entre o centro e a esquerda, porque Bernie Sanders recuou, mas soube mobilizar-se para Biden. Ainda assim, temos pessoas na esquerda a dizer que o grande inimigo é Hillary Clinton. Não é surpresa que uma certa esquerda estalinista acabe por estar alinhada, ou faça eco, da agenda de Putin.”
Quando lhe solicitamos um cenário de futuro, ri-se. “Não me parece que alguém saiba o que irá acontecer. A guerra de Putin não é apenas com a Ucrânia, é também com as democracias ocidentais, isso é óbvio. Os EUA e a Europa continuarão a armar a Ucrânia; o tom da ameaça nuclear russa vai subir e o Ocidente terá de ter nervos de aço para não jogar esse jogo.” Uma coisa é certa para ele. “A indignação emocional não é suficiente. Sou a favor de darmos armas, dinheiro e informação secreta à Ucrânia, bem como impor sanções à Rússia e apoiar movimentos de oposição democrática contra Putin.” Em relação à posição a adoptar perante a Ucrânia, diz que é necessário à esquerda “trabalhar nos contactos estreitos com sindicatos, forças democráticas ou defensores dos direitos humanos”. “Os meus amigos em Kiev dizem: só uma Ucrânia não oligárquica e democrática pode vencer, não só a guerra contra a Rússia, mas também contra o oligarquismo capitalista.”
Da mesma maneira defende que a esquerda europeia deve ajudar na promoção de transformações democráticas no interior da Rússia. “À minha volta, vejo muitos liberais burgueses a exporem que uma alteração na Rússia não é possível por causa da concentração de poderes ou pelo autoritarismo. Parece-me que essas pessoas não têm muita imaginação quando se pensa no que as massas podem fazer, talvez porque passam o tempo a afastar-se delas. Essa passividade que atribuímos à população russa não é real. Nas circunstâncias certas, produzem-se muitas surpresas que, na verdade, quando acontecem, percebemos que não o são tanto assim. Não me surpreenderia que, mais cedo ou mais tarde, o sistema político em torno de Putin entrasse em colapso e o próprio fosse colocado contra a parede, embora ninguém saiba o que vem aí. Estamos a viver um tempo de monstros e pesadelos e não nos devemos esquecer que é nas crises e nas guerras que o fascismo mais opera e se dissemina.”
Para travar o fascismo, não propõe apenas a criação de uma frente de esquerdas e forças do centro, defendendo também leis antifascistas, visando a extrema-direita, tal como foram delineadas na Alemanha do pós-guerra. “Às vezes, é simples: trata-se apenas de aplicar a lei para fazer cumprir a lei. Temos de forçar a máquina estatal a defender algo chamado ‘democracia’. A tradição democrática europeia não gosta de fazer essas coisas, mas para travar uma segunda onda fascista é preciso agir e já!”
Ou seja, segundo Paul Mason, é indispensável uma resposta institucional mais eficaz. “É preciso regular as grandes multinacionais tecnológicas, impedindo-as de espalhar a ideologia fascista. São precisas leis antifascistas do tipo que a Alemanha tem, incluindo a vigilância oficial do Estado sobre alguns grupos que professam essa ideologia, a proibição de difamação de grupos étnicos ou ter em atenção a infiltração de fascistas nas polícias e nas forças armadas. É preciso promover uma ética antifascista. Uma coisa é dizer não ao racismo no futebol. Outra é dizer não ao fascismo na sociedade civil. É disso que precisamos.”
De uma coisa diz-se certo. “Um mundo controlado por Putin, Xi Jinping, Modi ou outro Trump qualquer não combaterá as mudanças climáticas ou as desigualdades gritantes, gerando gradualmente uma sociedade totalitária. É isso que queremos? Temos de nos interrogar. É preciso ver que a guerra nuclear não é o único risco existencial que enfrentamos.”
Ainda assim, como já acontecia no seu anterior livro, deixa uma mensagem final de confiança e de alento, resgatando memórias da sua própria biografia, feita de avanços e recuos, mas de participação incessante em combates dos quais não se arrepende. “As classes trabalhadoras num sentido não clássico, ou as classes médias, estão desalentadas e enfraquecidas, mas é preciso manter vivas a democracia e os ideais de justiça social. Não perdi o optimismo de que vamos lutar.”
Hoje, mais do que em qualquer outro momento da história recente, diz, a liberdade está ameaçada. Não pode ser dada como certa. “Quem a deseja realmente vai ter de a defender e lutar por ela, sem desculpas.”
Texto originalmente publicado no Público (Ipsílon) de Maio de 2022