Marie Davidson e o capitalismo de vigilância na pista de dança
Acontece. Alguns dos álbuns guiados por eletrónicas que mais expetativas geravam neste inicio de ano (o segundo de Ela Minus, lançado em Janeiro, e da dupla Darkside, de Fevereiro), ficaram abaixo do que já fizeram.
No sentido inverso está Marie Davidson. O novo “City Of Clowns” é o seu mais registo mais conseguido. Para quem gosta de eletrónica dançante guiada por voz feminina e preocupações sociopolíticas, o novo da canadiana, na linha da inglesa Kelly Lee Owens, mas também das colombianas diaspóricas, Ela Minus e Sofia Kourtesis, cumpre com toda a distinção os preceitos.
Inspirada pelas criticas ao capitalismo de Shoshana Zuboff no livro “A Era do Capitalismo de Vigilância” (2019), faz música para as pessoas, não para algoritmos, ajudada na produção pelos Soulwax e por Pierre Guerineau, com a precisão tecno robótica, a coabitar com palavras onde o pessoal e o político se tocam. No centro está o neoliberalismo digital e a forma como se propagou para todas as áreas da nossa vida. O que está em causa não é, claro, a tecnologia, mas o modelo de negócio de multinacionais como a Google, Meta ou Amazon, levantando questões de privacidade, desigualdade e totalitarismo.
Entre impulsos rítmicos sedutores, sintetizadores borbulhantes e ideias pop imaginativas, é um álbum que parece ter sido concebido para encurtar a distância entre pista de dança, o interior de cada um e temas onde o poder, categórico e pouco transparente, dos colossos tecnológicos, é dissecado.
Por vezes o seu estilo de procurar as palavras, mais falado do que cantado, quase lacónico, faz ressonância no do americano Matthew Dear, outro nome em quem se pensa ouvindo o seu álbum. O tom é quase confessional, mas os encadeamentos eletrónicos são minimalistas e os ambientes tão lúdicos quanto turvos, existindo uma envolvência consistente em todas as canções. Distinta.