O artista de olhos bem abertos: JR

O seu trabalho tem algo de grandioso, numa linguagem simples, por norma apostando na descontextualização, o que faz dele um caso de grande sucesso, operando a pensar no mercado global. Começou por fazer arte de rua em Paris, mas há muito que atravessa continentes. Curiosamente nunca havia exposto a solo em Portugal.

A primeira exposição de JR estará na galeria Underdogs, em Lisboa, de 28 de Março a 19 de Abril. Chama-se “JR: Through My Window” e apresenta-nos o trabalho do fotógrafo, artista e ativista francês sob um olhar retrospetivo, através de 36 litografias das suas instalações de grande escala, que transportam sempre também uma história social e comunitária.

Da ilusão de ótica no Museu do Louvre, em Paris, à intervenção na prisão de alta segurança Tehachapi, na Califórnia, JR divide-se entre a criação de obras monumentais e o trabalho com comunidades locais, em campos de refugiados, zonas de conflito, e outros locais.

Em 2018, no contexto do documentário “Olhares, Lugares”, uma ideia sua e da realizadora Agnès Varda (1928-2019), assinada por ambos, escrevi um perfil dele, intitulado “O Artista de Olhos bem Abertos.”

Poucos sabem o seu verdadeiro nome – JR é o seu pseudónimo – nem tão pouco é visto em público sem os óculos de sol e o chapéu. Ainda assim a actividade do artista francês trespassou todas as fronteiras. Hoje em dia é mesmo um fenómeno digital com milhões de seguidores.

Essa é uma das ferramentas que utiliza para difundir os seus trabalhos, mas é na rua que se sente confortável, conhecendo pessoas, ouvindo as suas histórias e tentando traduzi-las na sua actividade. Em primeiro lugar é fotógrafo, especialmente de rostos, mas foi a forma como foi inscrevendo as suas fotos gigantes no espaço público que lhe granjearam reputação.

Hoje é disputado por galerias – é representado pela Perrotin – encontrando-se o seu trabalho disseminado por museus, bienais e importantes colecções privadas e institucionais. Ou seja, uma forma de operar semelhante a outros nomes como Banksy, Vhils ou Shepard Fairey.

A meio dos anos 2000, quando encontrou uma máquina fotográfica no metro de Paris, e começou a retratar pessoas anónimas, colando o resultado nas paredes dos bairros burgueses da capital francesa, nem o próprio previa o impacto que iria ter nos anos vindouros.


Foi em 2007 que se tornou notícia fora de França, e que de alguma forma encontrou a sua linguagem, quando fotografou pessoas de ambos os lados da fronteira entre Israel e a Palestina e as exibiu no muro. Eram fotos de uma beleza emotiva, com qualquer coisa de ressonância por um presente de dúvida, quando o passado já se foi e o futuro não passa ainda de mera promessa.


“Quem é esta pessoa? Porque está exposta nesta parede? O que deseja comunicar? Que sentido tem esta imagem para mim?” Estas são algumas das perguntas que ele espera que o seu trabalho em espaço público sugestione. Como o presente documentário mostra interessar-lhe a partilha das subjectividades dos encontros – dele com Agnés Varda, e deles com quem vão encontrando pelo caminho na sua viagem a dois. Podem ser encontros efémeros, mas ainda assim produtivos, revelando por vezes um tipo de realidade que é invisível aos olhos da maioria, gerando o debate.

JR e Agnés Varda no documentário “Olhares, Lugares” (2017)

Foi isso que aconteceu, por exemplo, na favela da Providência, no Rio de Janeiro, em 2008, quando ali expandiu o seu projecto Women Are Heroes, que já tinha intervenções na Libéria e Quénia. No meio de disputas entre traficantes e polícia, foram os moradores que acabaram por reconhecer o poder do papel e da cola, conseguindo que existissem tréguas para que o artista cobrisse as fachadas de tijolo com os rostos coloridos das mães e avós de quem apenas deseja ter uma vida e um bairro melhor. De repente, a Providência era notícia em todo o mundo, e não por violência.

Quando os media quiseram perceber o que se passava, já JR tinha deixado o protagonismo para as mulheres sem voz da comunidade. O seu propósito? Humanizar aquelas pessoas, mostrar que as suas histórias são relevantes e os seus anseios semelhantes a quem vive em Ipanema ou no Léblon. O poder da arte é mudar a percepção das coisas, argumenta ele.

Em 2011 recebeu o prémio TED, concretizando o projecto Inside Out com a avultada soma recebida, comprometendo-se a imprimir e a reenviar fotos das pessoas que quisessem participar na operação. Hoje é visto como sendo um dos maiores projectos participativos do mundo, tendo sido recebidas e impressas cerca de 400 mil fotografias em 129 países.

Como a maior parte dos artistas do seu género, actua muitas vezes na legalidade, mas outras na tensão, ou nas fronteiras ténues da ilegalidade. Também a sua relação com o capital é ambivalente. Talvez tenha de o ser.

Muitos dos seus projectos são autofinanciados ou recorrendo a donativos. As receitas vêm dos trabalhos de encomenda, como as fotos gigantes de atletas que instalou no Rio durante os Jogos Olímpicos, ou quando cobriu a pirâmide do Museu do Louvre em Paris, com uma imagem da fachada a preto-e-branco, criando uma ilusão óptica que a fazia desaparecer. Sempre que uma marca utiliza as suas obras de rua acciona os seus advogados. O seu trabalho não é pensado para vender nenhum produto, argumenta ele.

Há menos de um ano voltou a ser notícia. Sonhou com um bebé que olhava por cima do muro que divide os Estados Unidos do México e a ideia materializou-se numa obra na zona de Tecate. Ali está disposta uma fotografia gigante de um bebé curioso de cerca de vinte metros de altura.

Como noutras operações, sem autorizações, foi para o terreno, encontrou uma casa isolada onde vivia uma mulher, Lissy, e o filho, Enrique Achondo. Pediu à mãe para o fotografar e assim aconteceu.


A obra acabou por ser revelada, através das redes sociais, na semana em que Trump suspendeu o programa DACA, tornando possível a deportação de milhares de imigrantes que chegaram ao país quando eram crianças ou adolescentes.


Ainda assim, afirmou nessa altura, a sua motivação directa não era Trump. “É apenas um projecto artístico que proporciona interrogações, mesmo se não tem respostas para fornecer. Os grandes muros são internos e gosto de os derrubar fazendo coisas que as pessoas crêem ser impossíveis.”

Por vezes os seus críticos argumentam que os seus dispositivos artísticos transmitem inteligibilidade e comunicabilidade, mas no processo perde-se alguma imprevisibilidade. Ele responde que se limita a ter os olhos bem abertos perante o mundo à sua volta, apesar de nós nunca os vermos.

O anonimato, pelo menos até certo ponto, é uma das suas máximas. Chegar ao terreno, ter que explicar quem é e convencer as pessoas a participar nos seus projectos, é o que lhe dá prazer. O processo, a viagem, como se percebe pelo documentário com Agnès Varda, é o que o move.

Texto originalmente publicado no jornal Público em Fevereiro de 2018

 

 

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