My Bloody Valentine: “Um estúdio, árvores e passarada! O que podemos pedir mais?”
Nos últimos dias não se tem falado de outra coisa. Os My Bloody Valentine voltaram, de surpresa, aos palcos e as reações de arrebatamento têm-se sucedido.
A sua influência tornou-se inequívoca nas últimas décadas, ainda para mais por estes dias quando o shoegaze conhece uma nova vida. Ainda há semanas saiu o excelente “Lotto“ dos They Are Gutting a Body of Water, onde essas marcas são visíveis.
Há quatro anos, em entrevista, Kevin Shields, dizia que se encontrava mais motivado do que nunca. O tempo tem vindo a dar-lhe razão.
Idealista sonoro da banda, o guitarrista Kevin Shields, e os seus três companheiros, foram capazes de em apenas três álbuns (Isn’t Anything de 1988, Loveless de 1991 e MVB de 2013), ampliar os horizontes da música rock, ao mesmo tempo que criaram a ramificação shoegaze (Ride, Slowdive, Lush), baseada num equilíbrio instável entre distorção e atmosferas, tornando-se numa das bandas mais influentes de sempre.
A sonoridade do grupo, de timbres de guitarra arrastados, vozes voluptuosas, panoramas sonoros e simbolismos poéticos, mantem a pertinência de sempre. Do campo, no interior da Irlanda, acedeu em falar de tudo, até de uma experiência surreal num festival no Algarve, com Hélio Morais (Linda Martini, Paus). Ao longo dos anos foi ganhando fama de renitente. Como tantas outras fantasias que são vão criando sobre quem não conhecemos, revelou-se afinal generoso, lúcido e com sentido de humor.
Que significado tem este conjunto de reedições de todo o catálogo do grupo, seja em formatos físicos, como em plataformas digitais onde ainda não estavam presentes, e esta ligação com a editora Domino?
Passámos a maior parte das nossas vidas numa espécie de obscuridade, o que até certo ponto era procurado por nós, mas também era desnecessário e até aborrecido para as pessoas quando pensamos nos discos. Não era fácil encontrar alguns dos nossos discos e os meus sobrinhos queixavam-se que não conseguiam dar a ouvir a nossa música aos amigos nas plataformas digitais. Com o álbum MBV a coisa agravou-se porque houve quem pagasse três ou quatro vezes mais o preço do disco o que não faz sentido. Somos detentores dos direitos sobre a nossa música há muito tempo, por isso a ideia inicial era termos um acordo de distribuição. Nesse processo de encontrarmos o melhor acordo possível surgiu a Domino, que é uma editora pela qual nutrimos respeito, e com ideias algo semelhantes a nós no que diz respeito ao mercado da música, e foi assim que acabámos por criar um acordo em que estão envolvidas a nossa editora e a Domino. No Reino Unido conseguimos distribuir os discos directamente para as lojas, mas as grandes cadeias recusam-se por vezes a esse tipo de opção. É por isso a primeira vez, desde 1991, que conseguimos ter o catálogo acessível. Por causa da pandemia tudo isto acabou por demorar mais tempo do que previsto, mas agora estão aí os discos e é uma sensação óptima.
Há alguns anos descreveu o álbum Isn’t Anything? como obra metafísica, muito sexual, lidando com uma certa dose de loucura, enquanto Loveless seria mais íntimo e MBV personificaria o fim de algo. Alguns anos depois, num olhar retrospectivo, pensa da mesma forma?
Sim. Quando fizemos Isn’t Anything eramos jovens, sexualmente muito activos, com uma vida livre e também nos metíamos em problemas – ou, pelo menos, metíamo-nos com pessoas muito doidas. É nesse sentido que esse disco é uma mistura de sexualidade e psicopatia. Olhando para trás eramos todos um pouco maníacos. Loveless acaba por ser um álbum mais complexo e diverso. Até aí as vozes eram muito simples e directas. Queríamos que contivessem qualquer coisa de áspero e orgânico, talvez porque estávamos preocupados com a reprodução vocal em palco. Quando fizemos Loveless isso deixou de nos inquietar e era mais a totalidade do som que nos interessava. A voz acabava por ser mais um elemento. Não significa que as vozes e as letras não fossem importantes, mas faziam mais parte de um todo. Enquanto isso, o álbum MBV foi feito num ambiente de fim de ciclo. Havia um ambiente de dissolução de algo.
É um fim, no sentido pessoal, ou uma referência ao estado do mundo?
Nunca componho uma canção como resposta à anterior, mas quando se grava num determinado tempo e espaço, é natural que esse conjunto de temas respire o mesmo tipo de ambiente e uma certa forma de pensar. Em 1996-97, no início do álbum MBV, havia um sentimento muito forte de desagregação em relação à sociedade e ao mundo em geral. Sentia que estávamos no fim de uma longa fase, ou pelo menos que existia um sentimento geral de exaustão. Não falo de um fim abrupto, mas de uma fase onde os mesmos ciclos estavam a acontecer um pouco por todo o lado, por diversas razões, expondo os mesmos motivos. Era como se algo se viesse a pronunciar há muito tempo e estivesse nas últimas, expondo ansiedade, tensão e uma profunda exaustão. O paradoxo é que o início e o final do álbum MBV são muito positivos, nada apocalípticos, embora exista uma parte que representa essa tensão como na canção Nothing is, que acabou por ser a chave que me levou a compreender o que estava a fazer nessa altura em 1996. Havia uma sensação de fim do conhecimento, como se o mundo tivesse entrado num beco sem saída, mesmo sabendo nós que o fim de algo representa também sempre o início de novas coisas. Não era apenas uma coisa – o clima, as questões ambientais, a sociedade, a economia a fraquejar ou questões pessoais – que me fazia sentir isso. Era o todo. Tudo se misturava. A minha idade. O ter nascido a meio do seculo XX. Uma sensação de desesperança. É como se a minha caminhada pessoal se confundisse com a caminhada do mundo.
Fala de ciclos. Parece-lhe que este momento, com a crise pandémica, poderá vir a representar uma nova etapa para a humanidade?
Sem dúvida. Tudo o que temos vindo a compilar em termos de informação com esta situação não é novo. Nada do que está a acontecer nos era estranho. Cresci numa era de cuidados ecológicos onde a extinção de animais, por exemplo, era constantemente falada. É um assunto com 50 anos por amor de Deus! E ao mesmo tempo o mesmo padrão de crescimento económico, pouco sustentando, foi sendo seguido pelo mundo, portanto, qual é a surpresa? Qual é a surpresa quando comprar um carro e uma bela casa se tornaram nas coisas mais importantes da vida das pessoas? Não estou a dizer que isso não é natural. Todos queremos uma casa confortável, dinheiro, uma certa independência e liberdade. O problema é quando isso se transforma em algo insaciável, enquanto à nossa volta o planeta se vai esvaindo e as coisas válidas e simples, os pássaros, os insectos, o ambiente, vai colapsando. Os seres humanos foram-se tornando cada vez mais negligentes, nada do que está a acontecer é surpresa. E isso é verdade para o planeta, com o ambiente, o clima e os outros seres vivos. Enquanto grupo ou comunidade, não me parece que os seres humanos sejam muito conscientes do que está a acontecer o que significa que, muito provavelmente, vamos ter de sofrer um grande susto – a pandemia não parece suficiente – para que possamos pensar em reconstruir o que temos vindo a deixar degradar. Nesse sentido a pandemia poderia funcionar como um sério aviso e uma forma de as pessoas desenvolverem um tipo de pensamento mais progressista e menos destrutivo, no sentido da transformação de todo o sistema. Mas não é fácil. Existe imenso ruído comunicacional à nossa volta.
Por falar em ruído, embora de um outro tipo, como é evidente, ao longo dos anos foram ficando conhecidos por tocarem ao vivo com o volume muito alto. Esse tipo de filosofia continua a fazer-lhe sentido?
Sim. Antes de fazermos grandes concertos, em espaços enormes, tocávamos em clubes de pequena ou média dimensão. E o volume sonoro era sempre alto. Era normal. Quando começamos a tocar em grandes espaços queríamos ter o mesmo tipo de ambiente que proporcionávamos nos clubes. Qualquer coisa de poderoso. Frequentávamos clubes de música house, entre 88 e 89, e agradava-nos essa imersão. Essa experiencia de estar num clube, onde a música era dominante e poderosa. Depois íamos ver uma banda rock e parecia-nos que estavam apenas ali uns tipos em cima do palco. Não havia envolvimento. Não havia aquela energia que era imitida a partir de um sistema de som num clube. Alguns tipos de música pedem para serem ouvidas com o volume bem alto e a nossa possui essas características.
É um tipo de música que pede um tipo de reacção física? Já agora, como é a sua relação com o estar em palco? É algo da dimensão do prazer?
Sim, mas depende dos palcos. Tocar, por exemplo, You made me realize, pode ser fisicamente extenuante, por causa dos subgraves. A vibração é intensa. São momentos excitantes, mas também fisicamente muito exigentes. Às vezes parece que estamos no meio de uma tempestade.
O que pensa quando comparam a sua música à pintura de artistas como Mark Rothko ou Jackson Pollock? Pergunto-lhe isso porque às vezes afirma que olha para a música de forma visual e não tanto sonicamente.
É verdade. Se compuser uma música e tentar lembrar-me dela, sem a ter gravado, recordo-me sempre dela de uma forma visual. Se tocar, por exemplo, cinco acordes, a minha memória disso – não vejo os cinco acordes – é gerada na forma de sombras. Há um certo tipo de melodias e um certo tipo de sombras e cores. E recordo-me mais disso do que das melodias. Chego às canções dessa forma: imaginando como é que elas são visualmente. A minha memória funciona de forma visual. Quando oiço canções, também as visualizo. Isso é mais comum do que imaginamos. Não tenho treino formal de música. Não tenho nenhuma ideia sobre notas. Sou muito intuitivo. Seis alguns acordes e é tudo. Acabo por funcionar com que o me vou lembrando visualmente. O resto é um grande mistério. E está bem para mim assim. Nenhum problema.
Em nenhum momento foi tentado pelo ensino convencional da música?
Sim. Uma vez empreguei alguém para me dar algumas lições mas desisti. Compor de forma clássica não parece que seja coisa para mim. Mas quem sabe se um dia não acontecerá. Nunca se sabe o dia de amanhã.
Há uns anos lançou um magnífico álbum em colaboração com Patti Smith, The Coral Sea, que para além da poesia dela, era também muito baseado em cores, formas, sombras. Aliás, ao longo dos anos tem colaborado com outros nomes, como Brian Eno, onde tem desenvolvido algumas dessas ideias. O que o motiva?
A Patti Smith é uma notável performer e improvisadora. Quando colaboro com esse tipo pessoas tento ouvi-las e segui-las. Sinto-me a aprender ao lado delas. É incrível e amável ver alguém que admiramos, e estarmos tão próximos. Com o Brian Eno é como ter uma espécie de ensino privativo, onde se acede à forma como ele trabalha, e ao mesmo tempo podemos participar e experienciar dessa forma de operar. É incrível. Se fosse rico pagaria uma nota preta para ter esse tipo de experiencia, por isso sinto que é uma oportunidade maravilhosa. O seu método de trabalho mais parece um jogo. Uma das coisas mais bonitas desta actividade é essa: sonha-se em estar num estúdio, quando se tem 17 ou 18 anos, com aquelas pessoas. E depois pode acontecer mesmo.
Quando tinha 18 anos quais eram as suas grandes inspirações para além desses nomes? Recordamo-nos de uma vez ter falado dos Public Enemy como referência. Não é um nome óbvio para associarmos à sua música.
Quando era jovem tinha uma grande curiosidade por tudo o que se passava à minha volta do ponto de vista da música. O rap era-me familiar. E os primeiros álbuns dos Public Enemy eram muito singulares. O tipo de produção era único. Aquilo soava extremamente moderno, apesar de toda a memória que transportava, com todos aqueles fragmentos da soul e funk dos anos 60 e 70. Se ouvirmos bem os temas deles dessa altura percebemos que havia ali uma mistura muito feliz de harmonia com uma certa dureza. Bandas desse tempo como os Sonic Youth ou os Dinosaur Jr podiam ser igualmente inspiradoras, mas os Public Enemy eram-no também, pela forma como conseguiam ser directos e ao mesmo tempo comunicativos. Isso era algo que me interessava também nesse período, essa dualidade entre trabalhar distorção e harmonia, altas e baixas frequências e todas essas coisas. Claro que não estávamos a reproduzir nada, mas eramos mais inspirados por projectos assim do que propriamente por bandas de guitarras.
Quando lhe perguntam acerca dos seus guitarristas preferidos também costuma ser desconcertante. Ainda pensa que Johnny Ramone, conhecido por saber apenas dois ou três acordes, é extraordinário?
Absolutamente. Quando comecei a pensar em fazer música obviamente que a música punk era a grande inspiração. A minha banda preferida eram os Beatles e adorava os Monkees. Em Dublin, em 1979, havia um clube que aos sábados à tarde recebia a maior parte das bandas punk e pós-punk da época. Os U2 estavam sempre a tocar lá. Não conhecia os Ramones, mas um dia antes de lá tocarem consegui ouvir uma ou outra coisa. E fui vê-los. E adorei. Eram diferentes. Tinham uma energia muito própria. Não tinham a ver com o circo de celebridades do rock e com bandas com um líder guitarrista exibicionista. Foi na altura em que descobri também os Buzzcocks e adorava o lado imediato da música. Tinham o mesmo sentido de urgência dos Beatles mas com mais energia e esse vigor era tão mais poderoso do que a maior parte das bandas rock da época. Quando se via os Ramones não se via propriamente o guitarrista. Via-se um organismo, uma entidade maior do que as diferentes partes, e sempre me revi nessa forma de estar. Ao mesmo tempo pareciam tipos completamente normais e extraterrestres. Eram verdadeiramente inspiradores. Em comparação, os Sex Pistols ou os The Clash – de quem também gostava – eram muito mais manuseadores da guitarra, na linha do Chuck Berry, por exemplo. Os Ramones eram muito mais incompreensíveis e únicos também! Para mim estavam ao nível dos Beatles, no sentido da magia que faziam acontecer. Tinham qualquer coisa de místico, mas ao mesmo tempo não pareciam fazer grande coisa para isso suceder, o que era muito estimulante. Pareciam não estar a tocar instrumentos. Pareciam fazer tudo de forma natural e simples. Quando os vi em palco era tudo alto e veloz e às vezes pareciam não saber o que estavam a tocar. Era tudo confuso, mas muito excitante.
Arrepende-se de alguma coisa do passado? Nunca foi claro, por exemplo, porque se juntou aos Primal Scream durante algum tempo.
Comecei a tocar com eles em 98, apenas algumas canções, por diversão. Foi um tempo da minha vida em que activamente estava a tentar escapar do que havia feito nos anos anteriores. Era algo que pensava que iria apenas durar uns meses. Nada de muito sério, portanto. Mas a partir de determinada altura tornou-se sério, com uma longa digressão pelo caminho. Tornou-se no meu emprego durante alguns anos. Depois em 2003 apareceu o filme e a banda-sonora de Lost In Traslation e comecei a fazer outra vez as minhas coisas. Não me arrependo. Foi divertido ter feito parte de uma banda como aquela. Limitar-me a tocar guitarra sem grandes pressões. Não havia tensão nenhuma. Era tudo muito fácil. Ao mesmo tempo deu-me uma outra perspectiva do funcionamento de uma banda, quando não se é o líder ou o tipo que está encarregue de quase tudo. E gostei muito disso. E até mudei a minha forma de tocar guitarra. Explorei outros filtros e outras técnicas e efeitos. Foi muito interessante. Até pelo sentimento de não ser eu propriamente. Estava consciente que seria uma questão de tempo até sair e ir criar as minhas coisas.
Vive fora das grandes cidades, no campo. Ganhou qualidade de vida?
Acho que sim. Eu e a minha mulher tratamos de tudo o que tem a ver com a editora e a banda. Ela é muito técnica em estúdio com as máquinas. A sua grande paixão é criar componentes electrónicos e fazer música também, mas é muito ligada aos processos. Antes do vírus já eramos quase independentes e, nos últimos meses, tornámo-nos mesmo autónomos. Temos um bom estúdio, bom equipamento, boa comida e muitas árvores e muita passarada nas redondezas o que é maravilhoso. O que posso pedir mais? E nas próximas semanas vamos voltar a gravar. Vivo aqui há seis anos. Não tenho de ir a Londres. Este é o nosso estúdio principal.
Mas o que está a preparar é um novo álbum dos My Bloody Valentine?
Sim, mais cedo ou mais tarde, haverá um novo álbum. Ou até dois. Há alguns anos que trabalhamos regularmente em material novo. Tínhamos um EP quase pronto para ser lançado em 2018 quando entrámos em digressão, mas não o conseguimos finalizar e eu pensei que poderia sair dali um álbum. É o que vai acontecer agora. A parte engraçada é que antes de termos começado a trabalhar nesse EP, tínhamos começado também a criar um álbum numa direcção diferente. Daí que podem sair dois álbuns. Mostram ideias diversas. Estamos a trabalhar nesses dois álbuns e estamos a finalizar o primeiro. O intervalo de tempo entre os dois deverá ser de cerca de seis meses. Vêm aí coisas boas, isso é certo.
*Hélio Morais e os lenços brancos para os My Bloody Valentine
Foi em 2009, num festival no Algarve, que o músico Hélio Morais, dos Linda Martini, dos Paus, e agora também a solo como Murais, viu pela primeira vez os My Bloody Valentine. Numa solicitação do próprio Kevin Shields, que elogiou a música dos Paus, Hélio Morais participou na entrevista, tendo recordado essa primeira actuação do grupo em Portugal, no âmbito de um festival com um alinhamento algo inusitado.
O festival Rock One, que ocorreu em Portimão, recebeu durante quatro noites, bandas como os Linkin Park, James ou os Waterboys, tendo os My Bloody Valentine actuado num dos dias entre os portugueses Tara Perdida e os americanos Offspring. O resultado, perante a muralha sonora dos irlandeses, foram manguitos dirigidos ao grupo e uma grande quantidade de lenços brancos enviados para o palco, o que não parece ter tido grande efeito, porque os Valentine continuaram a sua actuação sem grande compaixão para os ouvidos de quem não os queria ouvir.
A primeira edição desse festival foi mesmo marcada por vários percalços, mas o episódio mais caricato foi mesmo o dos muitos lenços brancos, normalmente utilizados no futebol para mostrarem insatisfação, vindos da assistência. “Aquilo surpreendeu-nos”, confessa um divertido Shields. “Para nós lenços brancos significavam paz!, não estávamos muito bem a perceber onde aquelas pessoas queriam chegar!” O alinhamento desajustado do dia incentivou o efeito.
“Vocês eram uns Ovnis naquele festival”, sublinha Hélio Morais. “Recordo-me bem desse dia”, lembra Shields. “Aquele era o festival dos Offspring, como era evidente. Mas acabou por ser divertido. Uma maluqueira terrível!” Hélio recorda-se de ter ido com amigos, tendo passado parte do tempo, dentro do carro, no parque de estacionamento. “Só saímos quando começaram a tocar e era por demais evidente que a esmagadora maioria não vos conhecia.”
“O agente que nos levou a esse festival era muito conhecido no meio. Trabalhava com os Coldplay ou o Eminem”, recorda Shields. “Conhecíamo-nos há muito tempo, desde que ele era um quase desconhecido e não tinha grande impacto. Era um tipo engraçado, outras vezes apenas meio pateta e muito singular. Dessa vez deu argolada. Aliás tivemos uma outra experiência semelhante, num outro festival, no mesmo ano, com os fãs dos Tool. Dessa vez não havia lenços brancos, mas parecia-me que tinham os dedos bem espetados na nossa direcção.”
Quando regressaram a Portugal, no Primavera Sound do Porto de 2013, também dividiram opiniões, com muita gente a desistir da experiência a meio, mas não houve animosidade. Para os que ficaram até ao fim foram ruidosos e maravilhosamente impiedosos. Não transigem com o seu legado. E fazem bem. A sua música nada tem de efusivo. É rock ruidoso, misterioso, melancólico. Há palavra, mas apenas para sublinhar a solidão da palavra. Há melodia, mas apenas a vislumbrará quem mergulhar nas camadas sonoras que vão sendo sobrepostas. É verdade. Nem sempre o público sabe como reagir nos seus concertos. Mas ainda bem que há grupos assim, que nos fazem repensar a nossa relação com a música.
Texto publicado no Público (Ípsilon) em Julho de 2021