Sétima Legião: Viagem a Um Deus Desconhecido
Foi como se fossem dois concertos. No primeiro, ouviu-se na íntegra “A Um Deus Desconhecido”, álbum de estreia da Sétima Legião. E no segundo, muitas das canções mais conhecidas, acumuladas com os anos. Foi emocionante, este domingo, no CCB (repete esta segunda), o espetáculo onde se revisitou esse gesto inaugural.
Nunca poderia ser, para os próprios, e para muita gente da assistência, eu incluído, apenas mais um concerto. Foi dos primeiros da minha vida, a apresentação, no Rock Rendez-Vous, desse álbum. Cresci a ouvir esse disco. Vi-os crescer, do pátio da faculdade de Belas Artes, ao lado dos Croix Sainte, até à 1ºparte de Lloyd Cole, com o Dramático de Cascais a cantar algumas daquelas canções em uníssono.
Em ocasiões assim, nunca é apenas música. É a vida a passar à nossa frente. São ressonâncias. É esse sentimento indefinível de que parte da vida já se foi, mas ao mesmo tempo não se foi ainda. Nunca se ouve apenas a voz e guitarra de Pedro Oliveira, o baixo e teclas de Rodrigo Leão, a bateria de Nuno Cruz ou a gaita de foles de Paulo Marinho. Vê-se o bairro das Estacas, à Av. de Roma, onde tudo começou. Vê-se o cinema Quarteto. Vê-se o ecossistema noturno do Bairro Alto a emergir. Vê-se o RRV cheio de gente de cinzento e pose cuidadosamente introspetiva.
E depois existe o som do teclado, e as palavras, e essa combinação indefinível que parece mapear memórias, amantes, amigos, as nossas melhores noites e as angústias da manhã seguinte. “A Um Deus Desconhecido” é isso. Memória – diferente de nostalgia – viva de um tempo ainda presente, muito mais do que tendemos a pensar, momentos pessoais e coletivos partilhados, numa alquimia de sons e palavras que nos transportam para um patamar indefinível de superação.
E apesar de conhecer os recantos daquele disco, nunca o tinha ouvido assim. Um jogo cénico sombreado, mais alusões do que clarões, os músicos quase invisíveis, imenso tempo e espaço para ocupar pela música. Lá estão as influências pós-punk (as mais modelares como Division, Felt, Echo, mas também algumas das singulares como Astley, Durutti ou Dead Can Dance), em tempo real, não em digestão, para além das percussões ritualísticas e das alusões poetizadas às raízes portuguesas.
O ambiente é sóbrio, solene até, toda uma dimensão etérea e lírica que por vezes nos escapa num concerto regular do grupo, com as canções mais rítmicas a coabitarem com os momentos mais atmosféricos. Às tantas, Pedro Oliveira, disse que aquele concerto era dedicado à memória de Ricardo Camacho (1954-2018). Só podia.
Ele, produtor, que depois haveria de ser membro do grupo, e que viria a perceber que aquela definição espacial podia ser enriquecida com muitos outros elementos, com essa conexão cultural entre “global” e “local” a poder ser mais nutrida.
E isso vislumbrou-se depois desse disco, e também na segunda metade da noite de domingo, com a entrada de Gabriel Gomes (acordeão, percussão, guitarra) ou Paulo Abelho (percussões), e vários convidados, que vieram introduzir outras dinâmicas.
Foi o momento da festa. Os sucessos foram tocados. O desejo de partilha tomou conta do espaço. A euforia instalou-se. Para o final ficou “Gloria” em versão mais roqueira do que o habitual. Dir-se-ia que, nesse álbum de estreia, a Sétima firmou as estruturas. Depois foi sustentando e diversificando esse edifício. Ainda lá está tudo.
Muitos anos, múltiplas atividades e experiências depois, voltaram a tocar aquele disco na totalidade e percebeu-se pela emoção em palco, e também fora dele, que, afinal, o segredo foi nunca deixarem de ser apenas um grupo de amigos da Av. de Roma que tinha como ambição subir ao palco do Rock Rendez-vous.