No País da Raspadinha
Foto: Dragos Sora
A “raspadinha” faz esta quinta-feira 30 anos. É o jogo social mais lucrativo para a Santa Casa e também o mais estigmatizado, porque relacionado com uso patológico, o que não surpreende, num país sempre à rasca. Em 2022 escrevi sobre a coisa.
“Soube-se esta semana: o Conselho Económico e Social vai estudar o vício da “raspadinha”. Na primeira etapa, será feita a caracterização socioeconómica de quem joga, sendo a segunda e terceira fases destinadas a chegar-se a um diagnóstico, com o perfil dos apostadores e a sua relação com comportamentos de vício em evidência, estando contempladas ressonâncias magnéticas a quem padece de dependência.
Ao que parece, o estudo demorará meses, tendo a ideia surgido depois do polémico anúncio, no ano passado, da criação de uma nova “raspadinha” para financiar a recuperação do património cultural. Sem me querer adiantar a resultados de carácter científico, do posto de observação empírico diria que são os sectores mais carenciados que jogam à “raspadinha”. E também não é preciso muito para perceber porquê.
É acessível, fácil, barato e de resultado instantâneo, sendo sobretudo um expediente de os mais necessitados idealizarem uma existência diferente. Os mais ricos jogam, nem todos, é certo, ao jogo da especulação, não precisam da “raspadinha”. A sua vida não está sujeita à sorte: têm dinheiro para a comprar. Diz o povo que o dinheiro não é garantia de felicidade. E é verdade. Mas na infelicidade, na insegurança, na incerteza, ajuda tê-lo.
Já no ano passado a Santa Casa da Misericórdia tinha andado à roda com uma série de dados, referentes a 2019, que não deixavam espaço para dúvidas, com as classes baixas e média-baixas a serem 76,6% do total dos apostadores, mais de metade mulheres, contando para o enquadramento o rendimento agregado, o nível de instrução e a situação na profissão. A principal motivação era, claro, o prémio, seguida da facilidade em jogar. Gastam-se 4,7 milhões de euros por dia. Portugal é o país da Europa com mais gasto por pessoa em “raspadinhas”. Mais do dobro da média europeia.
Em 2018, a Santa Casa da Misericórdia recebeu 1600 milhões de euros brutos pelos vários jogos que publicita. O paradoxo é que a instituição que garante auxiliar os pobres, o faz com o dinheiro que lhes retira. A caridade faz-se à custa dos que anseiam por uma existência digna. Ou seja, lança-se o isco. A tentação está em todo o lado. Há quem fique agarrado. Olha-se para o dinheiro arrecadado. Depois fazem-se estudos e lamentam-se as consequências. As causas nunca são enunciadas. E a seguir distribuem-se migalhas pelos que ficaram dependentes. E no final culpabilizamo-los.
Dizemos-lhe que são viciados ou que falharam no jogo social da meritocracia e medicamo-los. Mascaram-se os verdadeiros problemas. Porque a solução é óbvia: sermos uma sociedade menos desigual, capaz de proporcionar existências dignas à larga maioria. Podemos e devemos discutir manifestações neurológicas ou alterações químicas individualizadas, mas apenas se as condições socioeconómicas colectivas que permitem essas desordens (insegurança no trabalho, precarização, desemprego, desesperança por falta de horizonte) forem também contempladas.
Uma sociedade que seja capaz de garantir alguma estabilidade económica aos seus cidadãos permite-lhes relaxamento e que se desliguem de preocupações financeiras e sejam capazes de planear o futuro. Isso não erradicará todos os problemas, mas não serão activados ou exacerbados por “raspadinhas”.
O famoso elevador social está encravado. E a avaria é estrutural, não é de conserto fácil. O que há, de vez em quando, são uns clarões que iludem. Como esta semana, quando as trombetas do regozijo se fizeram ouvir porque o turismo regressou em força — Portugal é isto, um país dependente de um só sector e ainda por cima volátil — e de imediato começou a falar-se da quimera do crescimento económico. A questão é que não só esse crescimento é residual, como o principal problema — a redistribuição desse crescimento — não é resolvido. Os do costume sorriem perante ele. Os outros jogam à “raspadinha”.
Opinião publicada em Maio de 2022, jornal Público.