Ritmo. Quotidiano. Tecno.
Charlotte de Witte no Neopop
O ritmo regula os nossos dias. Os passos. As vozes. As conversas. Os silêncios. As máquinas. Os carros. O ofegar. A ansiedade. O relaxar. O ritmo mapeia o nosso mundo interno e externo.
O tecno, ou o house, e as suas inúmeras variações, através da sua estética repetitiva, poderia ser uma forma de traduzir o ritmo do quotidiano em arte. Uma reorganização digital capaz de criar novos territórios e espaços emocionais, um código cultural que reflete a aceleração da vida moderna e até os padrões invisíveis que regem o nosso comportamento diário.
Em 2004, numa entrevista a Ralf Hütter, líder dos Kraftwerk, este falava da música dos alemães como uma reinterpretação tecno-lógica da nossa experiência física e emocional. Na sua visão, o tecno transforma o banal em algo performativo. Cada batida é reflexo dos semáforos que piscam, dos corações apaixonados que aceleram, dos algoritmos que nos perseguem.
O tecno é isso. Mas também pode ser, como ouvi há dez minutos numa cafeteria em Viana do Castelo, onde esta quinta-feira começou o festival Neopop, “música para queimados”. É uma hipótese, embora neste mundo em chamas onde vivemos, estejamos todos chamuscados. Uns até já morreram mentalmente – há cada vez mais zombies à nossa volta – e não o perceberam.
Estou no Neopop. A última vez que aqui vim ainda se chamava Anti-Pop. Há uns vinte anos, portanto. Um festival de tecno é como entrar num espaço-tempo alternativo. Gosto disso. Sempre igual, sempre diferente, misto de resistência – desculpem o cliché – e libertação.
E pode ser também uma ferramenta para explorar política, identidade e tecnologia. Tanto uma celebração, quanto uma provocação. Há alguns temas recorrentes que, paradoxalmente, parecem datados, como a associação do tecno à ideia de futuro e de tecnologia. Qual futuro? Quando ele parece inexistente, ou cada vez mais ancestral? E que tecnologia? Quando estamos dissociados das suas transformações e dos enquadramentos sociopolíticos das mesmas?
O que continua lá, mas no corpo, é a possibilidade de transcendência, a indução para uma experiência de transe ou de meditação. Sim, também existe quem esteja sempre de mãos no ar, em celebração hedonista, e nenhum mal nisso. Não se avistam é bandeiras da Palestina. Tenho pena.
Está nevoeiro, envolve o corpo, já o tecno desafia a mente. Como na sessão de Diana Oliveira, algures entre o tecno e o house, impulsos delicados, mais do que em força, por entre diferentes estados de espírito, que Frank Maurel, de seguida, agarra, com precisão e maior contundência.
Na pista secundária é Gonçalo Salgado, ou seja Lake Haze, que mistura sons digitalizados e ácidos, tanto optando por ritmos planantes, como quebrados, mantendo a pista acesa de forma nada óbvia, secundado pelo americano Solar e pelos Desdren, o duo Ivan Smagghe e Manfredas, duas mentes sabedoras de como propor uma sessão imprevisível, sem facilitismos, e ainda assim nunca perdendo o foco no balanço físico, numa tempestade controlada.
A belga Charlotte de Witte era a grande atração da primeira noite. Já a (ou)vi várias vezes. Percebo o fascínio, sessões intensas, hipnóticas e capacidade para, num curto período de tempo, transformar o espaço num campo de som que vibra. Não há enfeites, só o ritmo cru, a repetição obsessiva e uma tensão que cresce como o nevoeiro, sendo o público, sorvido.
Depois ainda houve outras coisas, como I Hate Models ou Goldie, obreiro do drum & bass, em sessão tecno. E não será, afinal, a mesma coisa? “Timeless”, com trinta anos, são ritmos quebrados que se reconstroem em espirais digitais, narrativas sónicas construídas com som, memória, espaço.
Fora do recinto, Viana do Castelo, com o nevoeiro e a noite, parece ainda mais misteriosa, suspensa, atmosférica, leve distorção da realidade. Talvez seja isso, então, tecno.