Sirât: Dançar até ao Fim
O som é absorvente e hipnótico, a pulsação do ritmo é implacável, os ambientes são desoladores e as texturas rugosas, numa totalidade imensa.
Dança-se, mas são movimentos espectrais, mais internalizados do que sociais. As baixas frequências alojam-se no corpo, existe qualquer coisa em construção, desfazendo-se e restaurando-se de imediato em nós, enquanto se atravessam paisagens infinitas. Ninguém olha para alguém. Dança-se consigo próprio, num mundo saído do dia seguinte ao juízo final.
Excerto de um texto meu, com mais de dez anos, sobre a música do produtor-músico-DJ alemão David Letellier, ou seja Kangding Ray, autor da banda-sonora de “Sirât”, realizado pelo gaulês-galego Óliver Laxe, que estreou anteontem. Mas não poderia ser sobre o próprio filme? Eis então uma obra onde paisagens, música, climas, morte e luto são indissociáveis como raramente acontece. Sei que é uma obra que vem acompanhada com o lastro de sensação. Mas entrei nele virgem.
Rapidamente percebi que convocava algumas das coisas que mais me estimulam e que conecto sem dificuldade. Tecno, dançar, paisagens áridas, estados liminares, uma relação temporal indefinida – somos informados de que rebentou a III guerra, mas poderíamos estar numa temporalidade ancestral, num primitivo corpo fluído, até pelas cicatrizes e amputações nos mesmos – e uma sensação de indefinição.
Algo está a acabar, algo novo poderá nascer, num trânsito ininterrupto, numa estrada para lado nenhum. A sua contemporaneidade vem daí. Dessa abstração. Desse não saber.
Existe uma narrativa. Mas não é o fundamental. Ontem vi o filme. Hoje estive a ouvir o álbum “Solens Arc” (2014) de Ray, e vi o filme outra vez.
Existem referências cinematográficas (Tarkovski, Kiarostami, Antonioni) e há quem veja um filme desmesurado e alienado. Percebo. Mas o infinito está em conexão com o intimo. O exterior com o interior. Inicialmente existe raiva e movimentos concretos. Depois vai-se desmaterializando em algo mais transcendental. Nas imagens, na música, nos personagens.
Há comunidade, solidão, chora-se, grita-se, morre-se, há saltos de fé no infinito e nunca pára de se dançar. Um filme imenso, em todos os sentidos.